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sábado, 11 de maio de 2013

Caminhos pré-colombianos: chegada dos humanos às Américas


O povoamento do continente americano foi multiétnico e descontínuo. Há divergência a respeito das rotas migratórias percorridas por diversos grupos étnicos que habitaram estas terras desde o fim da Era Glacial

Glaucia Malerba Sene*

Há pelo menos 12 mil anos, os primeiros hominídeos chegaram às Américas, caminhando lentamente, em pequenos grupos e por diferentes caminhos. Estas migrações foram multiétnicas e descontínuas. Hoje, já se sabe que os habitantes pré-colombianos deste continente percorreram ao menos quatro levas migratórias: três passando pelo Estreito de Bering (em épocas distintas) com chegada ao Alasca – e, em uma delas – posterior migração para Patagônia e sul do Chile. E pelo menos uma (ainda mais antiga) que teria vindo pelo Oceano Atlântico da Europa, cujo destino foi o sudeste dos Estados Unidos. Mas a trajetória até a aceitação científica das múltiplas origens dos nossos ancestrais foi longa e tortuosa. 

Durante as primeiras décadas do século XX, por exemplo, estudiosos norte-americanos apostaram suas fichas na existência de apenas um modelo preponderante de migração para este continente, que consistia na vinda de grupos de caçadores de animais de grande porte da Sibéria em direção ao Alasca. Os ancestrais dos atuais esquimós teriam chegado ao continente em três levas – entre 12 e 6 mil anos atrás, durante o último período glacial. A teoria chamada “Clovis First”, no entanto, deixava algumas brechas na pré-História. Dúvidas que só começaram a ser respondidas em 1975, com a análise do fóssil brasileiro Luzia, pelo bioarqueólogo da Universidade de São Paulo, Walter Neves.

O crânio da “paleoíndia” veio à tona pela antropóloga física Marília Alvim, após escavações nos sítio da Lapa Vermelha, em Minas Gerais. E logo se tornou ferramenta fundamental neste processo de mudança de paradigmas acerca das rotas migratórias, já que Luzia possui traço negroide, bem diferente do mongoloide - predominante nos ancestrais da América do Norte -, conforme indicou a pesquisa de Walter Neves. Sua teoria se tornou ainda mais clara após ter sido feita sua reconstituição facial.

Antes destes estudos se concluírem, no entanto, a arqueóloga francesa Annete Laming-Emperaire, responsável pela Missão Francesa no Brasil, já havia confirmado presença humana na mesma região mineira com datações variando entre 11 e 7 mil anos de idade. E, cem anos antes, o naturalista dinamarquês Peter Lund já havia feito as primeiras descobertas da arqueologia brasileira na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, sem saber que contribuiria para alimentar a posterior reviravolta nas diásporas migratórias americanas. Na época de Lund, ou seja, final do século XIX, foram encontrados dezenas de sítios arqueológicos em cavernas da região e centenas de esqueletos, muitos dos quais conduzidos à Europa, especialmente à Dinamarca para serem estudados por especialistas.

Nos últimos anos, outros registros arqueológicos com características semelhantes foram identificados também em Santana do Riacho, Minas Gerais e Caatinga de Moura, Bahia, no Brasil, além de achados nos Estados Unidos, no México, no Chile, na Colômbia e na Argentina. Walter Neves coletou todas estas informações e publicou o resultado de sua pesquisa, indicando a possibilidade da existências de migrações americanas entre 20 e 25 mil anos atrás.

Outros casos
Na região de Monte Verde, no sul do Chile, escavações e estudos arqueológicos também realizados na década de 1970 indicaram que grupos caçadores-coletores haviam passado por ali há pelo menos 12.500 anos. A informação inviabilizava a teoria clássica migratória via Estreito de Bering para esta região, através do interior do continente americano. Ou seja, os “paleoíndios” daquela região do Chile teriam vindo também do norte do continente, mas via costa do Pacífico sem ultrapassar os limites da cordilheira. Surge, então, mais uma possibilidade migratória: o deslocamento via costa do Pacífico, que explicaria perfeitamente a rápida chegada à América do Sul, especificamente em Monte Verde, justificando ainda outras datações antigas encontradas na Patagônia e sul do Brasil.

Outras descobertas, como de sítios arqueológicos no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, também figuram o quadro de achados antigos do Brasil. Os vestígios de paleoíndios na região datam algo em torno de 50 mil anos atrás. Tais resultados levaram os pesquisadores envolvidos a sugerirem a chegada do homem ao local por meio de migrações via oceano Atlântico, cujos grupos, provenientes da África, teriam vindo em pequenas embarcações, em meio às inúmeras ilhas que afloravam na travessia, em função da oscilação do nível do mar. Esta hipótese migratória ainda encontra resistência no meio científico internacional.

Mas o caminho via oceano Atlântico para outras regiões da América chega a ser cogitado em outros casos, como o dos “paleoíndios” que se assentaram no sudeste dos Estados Unidos, provavelmente entre 25 e 17 mil anos atrás. Desde 1998, os pesquisadores Dennis Stanford e Bruce Bradley, da universidade britânica do Exeter, vem defendendo a vinda de grupos da Europa para a costa leste norte-americana, à bordo de pequenas embarcações. Foram encontrados sítios arqueológicos nos estados de Maryland, Pennsylvania, Virgínia, Florida e Delaware que apresentam vestígios de cultura material semelhante aos encontrados em escavações no Velho Continente.

Sambaquis e tupiguaranis
As migrações sempre foram necessárias entre os grupos de caçadores-coletores. No Brasil, não poderia ser diferente, os deslocamentos persistiram ao longo do tempo, ganhando força por volta de 6 mil até o início da era cristã, quando grupos interioranos seguiram em direção ao litoral, em razão do aumento da temperatura e da maior disponibilidade de alimentos na costa, dando origem aos conhecidos sambaquis. Pouco se sabe dos percursos escolhidos para estas migrações. Há indícios de contatos com outras populações, especialmente no sul do Brasil, dada a monumentalidade e diversidade dos artefatos encontrados nessa faixa litorânea. As datações mais antigas estão no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Paraná, entre 7.500 e 6.000 anos.

Coincidentemente, no mesmo período em que os sambaquieiros entravam em colapso, tinha início mais um novo ciclo de migrações, desta vez de grupos horticultores, vindos da Amazônia, detentores de uma organização social mais consistente e uma produção material tecnologicamente mais complexa. Englobados na tradição tupiguarani no último quartel do século XX, não representam uma unidade étnica, social e cultural, tendo sido recentemente denominados na arqueologia brasileira por “grupos portadores de cerâmica tupi-guarani”.

Há pelo menos três grandes propostas para a migração dos grupos tupi-guarani. Uma delas indica a existência de movimentos migratórios advindos da Amazônia Central – ou via rio Amazonas em direção à foz - e de lá teria seguido pelo litoral até São Paulo, compondo o ramo Tupinambá. A segunda indica a origem aos Guarani pelos afluentes dos rios Madeira e Guaporé, se disseminando pela bacia dos rios Paraná e Paraguai no sul do Brasil. A terceira e mais distinta, tem como ponto de dispersão a mesma região amazônica: os grupos Tupi, migrando unicamente pelo Brasil central, atingido o litoral na região sudeste, possivelmente através do Vale do Paranapanema. Neste ponto, uma parte teria seguido o rumo norte e outra, sul, dando origem aos Tupinambá e Guarani.

Se os pontos de partida e chegada dos grupos caçadores-coletores, sambaquieiros e horticultores já estão claramente identificados, seus verdadeiros itinerários ainda são obscuros. Os rastros dos caminhos milenares percorridos por estes povos foram sendo apagados pelo tempo e a pesquisa arqueológica tenta refazê-los pouco a pouco, dia após dia.

*Glaucia Malerba Sene é professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Arqueologia do Museu Nacional (UFRJ) e autora da tese Indicadores de gênero na pré-história brasileira: contexto funerário, simbolismo e diferenciação social. O caso da Gruta do Gentio II, Unaí, Minas Gerais (USP, 2008).

Disponível em Revista de História

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