Diogenes Antônio Moreira Júnior
A bandeira brasileira não exprime a política nem a história. É um símbolo da natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso terrestre. O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional, que canta mares mais verdes, céus mais azuis, bosques como as flores e nossa vida de ‘mais amores’. (...) O mito do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e grandeza se acham predeterminadas no plano natural: somos sensuais, alegres e não-violentos.
(CHAUÍ, Marilena. Folha de São Paulo, 26/03/2000.)
A formação da identidade nacional no Brasil foi um processo longo e com ritmos bem distintos. Hoje, é indiscutível o sucesso dessa formatação cultural. Em um país que abrigou tantas matrizes étnicas desde a colonização portuguesa, onde essas etnias estiveram por diversas vezes em condição de conflito social, onde as dimensões territoriais continentais fomentam a diversidade e as heranças históricas continuam promovendo distinções raciais, religiosas e culturais, essa tarefa tornava-se inviável. Entretanto, poucos países abrigam um povo tão identificado com seu país e conectado por laços de identidade como o Brasil. Ao longo da história forjou-se um país, um povo, uma cultura: a cultura brasileira.
Etapas da formação da identidade nacional brasileira
- Período colonial: Raízes e inserção na atual sociedade brasileira
Nesse momento da história do Brasil não havia ainda uma nação. O Estado brasileiro só surge com a independência, portanto não havia autonomia política. Também não havia o sentimento de pertencimento ao território. O Brasil era extensão do Império português e nas relações socioeconômicas criadas aqui, a identificação dos grupos era com sua condição social, isto é, um grande proprietário de terras, um funcionário português ou um escravo, cada qual buscando impor sua condição social ou romper com ela. Uma das poucas relações que foi se desconfigurando foi a do indígena com a terra. Com o passar dos séculos, a Igreja foi se apropriando cada vez mais do comportamento dos índios e desconfigurando os padrões de cultura desse segmento social. Uma vez catequizados, a fronteira entre os indígenas e a cultura indígena ficava cada vez maior.
E não estamos afirmando que a inexistência de identidade seja um fenômeno dos primeiros momentos de colonização. Em pleno século XVIII, revoltas separatistas no Brasil lutavam por causas extremamente regionais. A Inconfidência Mineira é o maior paradigma dessa ausência de patriotismo. Os inconfidentes não lutavam por uma causa nacional, mas sim por seus interesses. A própria Independência do Brasil serve como exemplo. Sem participação popular e com poucas batalhas, nada foi além do que uma soma de interesses entre algumas elites. Não havia um movimento nacional organizado em um território com tantos escravos e onde a terra era tão concentrada, a conquista política não podia envolver as multidões. Os conceitos de liberdade e igualdade poderiam levar a uma percepção de exclusão e ausência de democracia racial, perigosa demais para as elites brasileiras.
Na construção da história oficial do Brasil isso sempre foi um entrave. Sem heróis e símbolos nacionais, as versões oficiais criaram falsos mitos, como Tiradentes, ou falsas versões dos fatos, como a idealizada imagem de independência da tela de Pedro Américo, pintado entre 1886 e 1888, período de decadência da monarquia.
Mas antes de analisar os primeiros passos da formação da identidade cultural brasileira através de ações oficiais do Estado, é fundamental identificar todos os elementos fundadores da cultura brasileira, presentes nos processos de conflitos sociais inerentes a colonização. Na formação cultural brasileira destacamos os seguintes elementos:
- Catolicismo.
Através da atuação direta dos jesuítas e secundária da Inquisição, a religião tornou-se o maior veículo de dominação cultural portuguesa no Brasil. Contudo, não impediram o enraizamento das manifestações religiosas africanas na produção cultural dos escravos, principalmente os Iorubás. A flexibilidade jesuítica para alcançar a confiança indígena e a permissividade da Igreja com os ritos africanos para não atrapalhar a escravidão e também com os padrões sexuais e culturais da elite para não criar atritos políticos, criou uma qualidade única de católico, o não praticante. Esse processo também determinou o hibridismo entre a cultura europeia e as culturas africanas, marca ímpar da cultura brasileira.
Observe como séculos depois, o povo brasileiro se manifesta como católico, muitas vezes por identificar status maior nessa religião do que por freqüência e crença nos dogmas:
Dados sobre religiosidade do início do século XXI
- A língua portuguesa.
Por mais que grande parte dos habitantes do Brasil ainda não falasse o idioma europeu no século XVIII, a sobreposição do português sobre os dialetos africanos e as línguas indígenas, indica estreita relação entre a dominação econômica portuguesa e a sobreposição cultural dos europeus. A partir da popularização do ensino público no século XX, os parâmetros educacionais não visavam uma democracia cultural no Brasil. Na verdade, poucas vezes a Educação e a cultura oficial brasileira criaram espaços para a valorização das culturas afro-brasileira ou indígenas, fator mais recorrente nos últimos dez anos, inclusive com deliberações jurídicas.
Porém, aqui vale também ressaltar que centenas de palavras de nossa língua são tributárias do universo linguístico indígena e até afro-brasileira ou mesmo que as variações regionais do português são impressionantes. Não foi uma superposição sem limitações.
- O sincretismo cultural.
Em muitos países a unidade cultural é uma marca forte. No Brasil esse traço seria impossível. Através da resistência escrava e da necessidade em negociar algum grau de autonomia cultural para evitar fugas, suicídios, revoltas, ou seja, grandes prejuízos, os donos de escravos e os agentes portugueses da administração tiveram que tolerar e permitir algumas práticas da cultura africana e afro-brasileira. Esse foi um processo fantástico, na medida em que mostrou a humanização dos escravos e impôs à cultura brasileira um traço mais heterogêneo, apesar do racismo e dos limites sociais de acesso a oportunidades secundarizarem grande parte dessas manifestações. Podemos destacar como marcas que atravessaram os séculos e a rejeição discriminatória de boa parte da sociedade brasileira, manifestações como a capoeira, a feijoada, o candomblé, o samba de raiz, o jongo, entre muitas outras.
Dois aspectos dessa imposição cultural afro-brasileira são ainda mais expressivos:
- Na esfera da religiosidade, o preconceito ainda é marcante. As religiões afro-brasileiras ainda não são valorizadas como manifestações legítimas e são vistas e tratadas com muita discriminação. Aliás, o reconhecimento das manifestações culturais afro-brasileiras por parte da sociedade depende muito da utilidade da mesma para as massas. O melhor exemplo está na musicalidade. Os mesmos ritmos que são demonizados nos terreiros, movimentam milhares de brasileiros nas festas regionais e no carnaval. O samba ganhou status, apesar das mesmas raízes históricas e sociais dos terreiros.
- Foi a cultura afro-brasileira e a cultura indígena que produziram a maior parte das grandes festas regionais do Brasil. Hoje, são produções múltiplas que fomentam o folclore nacional e associam inúmeras dimensões da cultura brasileira, ou seja, danças, músicas, culinária, literatura, entre tantas outras, em quase todas as regiões, produzindo uma aquarela cultural regionalizada que é vista como uma das maiores riquezas do país.
- O racismo.
Esse traço social é um dos maiores problemas da história do Brasil. Apesar da evolução expressiva nas relações inter-raciais no país, da própria constituição de 1988 combater o racismo como crime inafiançável, ainda existe muita discriminação com a cultura negra e alguns índices sociais apresentam esse problema. Níveis de escolaridade e de renda per capita muito baixo, pouco acesso a moradia, pequeno fluxo nos círculos de poder e de mídia, tudo isso demonstra o quanto o problema racial se enraizou na organização da sociedade brasileira. Definitivamente a escravidão criou o racismo e a forma como ela foi abolida (Lei Áurea- 1888) não foi suficiente para inverter essa realidade. Muito pelo contrário, nos primórdios da república as manifestações culturais dos negros eram reprimidas e o Estado republicano não organizou nenhuma política de afirmação social para os ex-escravos ou seus descendentes. Faltou emprego, acesso as escolas, saúde pública de qualidade, moradia digna e aceitação social.
Esse fator está na origem do período colonial brasileiro. Com a desvalorização da condição social do escravo (mercadoria, propriedade e mão de obra) e a relação direta entre essa condição e a condição racial deles (negros), surgiu o racismo. O que era produção social dos negros era visto como inferior porque era uma produção cultural escravista.
Vejam os dados abaixo:
“Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelam que dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza extrema ou indigência, 70% são negros. Entre os 53 milhões de pobres do país, 63% são negros.”
“Segundo dados de 2001 sobre a população ocupada de 25 anos ou mais de idade, 41,1% das pessoas brancas que trabalhavam ocupavam empregos formais [empregados (as) com carteira assinada ou funcionários(as)]. No entanto, esse era o caso de apenas 33,1% dos afrodescendentes. Dos empregados sem carteira assinada, 12,3% são de empregados brancos, contra 17,3% de empregados afrodescendentes. Finalmente, notamos que os empregadores brancos totalizavam 7,1% enquanto os afrodescendentes, apenas, 2,8%.”
“Dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e da Justiça revelam que o rendimento médio dos homens brancos é de 6,3 salários mínimos, da mulher branca é de 3,6 SM, do homem negro é de 2.9 SM e da mulher negra 1,7 SM. Ou seja, as mulheres ganham em média metade do que ganham os homens, sendo que as mulheres negras ganham quatro vezes menos que os homens brancos. O emprego doméstico continua sendo a principal fonte de ocupação feminina, sendo que 56% dessa categoria são mulheres negras, no entanto, apenas 1/3 tem seus direitos trabalhistas assegurados.”
É fundamental não criar um discurso unilateral sobre questões raciais e atuar nessa conjuntura com políticas públicas mais amplas, mas não podemos fechar os olhos para as implicações do passado escravista e da inexistência de um planejamento político efetivo para combater os problemas raciais desde a lei áurea. Nesse campo cultural, a questão das cotas é a que tem mais evidência e ganha mais polêmica, mas que ainda está aquém de inverter o quadro apresentado pelos números acima. É preciso ir muito além para criar um país onde realmente a questão racial não seja um critério de acesso ou de oportunidades.
- O Papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) do Romantismo na construção da identidade nacional brasileira no século XIX
Após a independência, o Brasil passava a condição de nação, ao menos no sentido político. Apesar da construção do Estado nacional começar a se configurar com a constituição de 1824 e com o reconhecimento externo, o discurso nacional só começou a ganhar forma no II Reinado. Sob o comando de D.Pedro II, o Estado brasileiro passou a construir uma imagem oficial do Brasil através da valorização dos valores nacionais defendidos pelo romantismo e pela publicação da história do Brasil, produção do IHGB, criado naquele momento.
O romantismo no Brasil criou uma cultura genuinamente brasileira. Como uma forma de publicidade do Brasil, os autores brasileiros procuravam expressar uma opinião, um gosto, uma cultura e um jeito autênticos, livres de traços europeus. A valorização da natureza e do índio de forma idealizada abriram caminho para a formação da consciência nacional brasileira, porém uma consciência mitificada e distante dos reais padrões sociais do país. A exaltação da natureza tornou-se a partir desse momento um mecanismo poderoso da mitificação do Brasil. A poesia “Canção do Exílio”, de Gonçalves dias, ecoou como um hino da identidade brasileira.
TRECHO DE CANÇÃO DO EXÍLIO
“Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores. “
Daí em diante a construção do “Brasil- paraíso”, do “gigante adormecido”, do “país do futuro” se sustenta principalmente pelas belezas naturais do país. Muitos mitos se reproduziram no século XX a partir dessa exaltação da natureza brasileira. Entre os mais populares estão “Amazônia, o pulmão do mundo”, “ Rio, a cidade maravilhosa.”, “ Brasil, o país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”. O problema dessa idealização do Brasil apenas pelas belezas naturais é ocultar as questões cotidianas do cenário político e econômico e criar um falso paradigma de desenvolvimento. Natureza sem tecnologia não representa garantia de crescimento positivo para o país.
Marilena Chauí apresenta essa idealização da natureza como um grave problema para a consciência social do brasileiro:
“A bandeira brasileira não exprime a política nem a história. É um símbolo da natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso terrestre. O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional, que canta mares mais verdes, céus mais azuis, bosques como as flores e nossa vida de ‘mais amores’. (...) O mito do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e grandeza se acham predeterminadas no plano natural: somos sensuais, alegres e não-violentos.”
(CHAUÍ, Marilena. Folha de São Paulo, 26/03/2000.)
Sem dúvida o maior legado do Romantismo para a formação da identidade brasileira foi a mitificação da natureza, mas o movimento também criou a ideia do índio como herói nacional. A imagem do índio através do romance de José de Alencar como personagem nobre, valoroso e fiel, personifica a imagem do brasileiro que o movimento idealiza e busca romper com as imagens do passado colonial, as imagens que retratam o índio como selvagem. Dentro dessa perspectiva, a obra da Igreja não pode ser critica como um desrespeito a diferença cultural e sim como regeneradora, uma visão utópica e irreal do passado brasileiro. O índio romântico é uma absurda invenção literária, sem reconhecimento na história.
Já o IHGB forjou a primeira história do Brasil. Nela os conflitos raciais e as desigualdades não apareciam e a idealização das belezas naturais fundiu-se a promessa do país de todas as raças. Fica difícil de interpretar qual das visões é mais irreal, a do Brasil excelente por natureza ou do Brasil, o país da democracia racial.
“A História do Brasil, a ser escrita pelos membros do IHGB, deveria ressaltar os valores ligados à unidade nacional e à centralização política, colocando a jovem nação brasileira como herdeira e continuadora da tarefa civilizadora portuguesa. A nação, cujo passado o IHGB iria construir, deveria surgir como fruto de uma civilização branca e européia nos trópicos.”
O IHGB não só forjou a identidade nacional, ele sustentou a centralização política da monarquia como uma necessidade para a unidade brasileira.
- Mitos do Brasil República
Em momentos diferentes do século XX, o Estado republicano acelerou o discurso de formação da identidade brasileira. Alienar a população, evitar movimentos sociais de contestação a ordem política, ocultar problemas econômicos, projetar necessidades imediatas de transformações para o futuro. Em cada conjuntura o discurso político serviu para uma finalidade diferente da elite brasileira.
Temos uma sequência de mitos públicos:
- Com Getúlio Vargas consolidou-se o mito do povo trabalhador e a integração nacional começou a ser feita pelo rádio. Só havia dignidade no governo de Getúlio para quem ajudasse o crescimento do país com o suor do trabalho. A criação da carteira de trabalho e a inserção de Vargas como o primeiro trabalhador do Brasil personificava com perfeição o mito.
Getúlio fez da cultura e do rádio o maior veículo de propagação da identificação entre o povo, o Estado, o território e a cultura. Era um momento de modernização do processo de criação de identidade nacional.
- Na Ditadura Militar, o potencial de desenvolvimento estava nas “forças naturais” do país e na importância do ideal de “ordem e progresso”. A partir do paradigma “NINGUÉM SEGURA ESSE PAÍS” o povo brasileiro era portador da capacidade criativa de fazer o país crescer e era colaborador direto do governo por ser cordial, manso e trabalhador. A ditadura construiu um “ufanismo autoritário”. A valorização do futebol como símbolo de unidade também ganhou força nos anos 70. O Brasil era a “pátria de chuteiras.” e a seleção brasileira na copa de 70, o maior expoente da publicidade política sobre a força do Brasil.
“Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil/ Salve a Seleção/ Todos juntos vamos/ Pra frente Brasil/ Salve a Seleção/ De repente é aquela corrente pra frente/ Todos num só coração”.E essa valorização não parou mais. Nos anos 80 e 90 o esporte era o maior agregador dos mitos brasileiros. Ayrton Senna da Silva personificou a força do povo brasileiro, “aquele que sofre, mas não desiste”, ”que conquista grandes vitórias apesar da dificuldade”.
Esse quadro político precisa ser compreendido de forma crítica. Através de todos esses discursos, as imagens da identidade brasileira legitimam um país maravilhoso e uma população que tudo suporta, visões que em nada colaboram para a formação da cidadania e da democracia plena.
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