Mulheres de “soldados da borracha” queixavam-se da vida dura nos alojamentos e reivindicavam assistência do governo
Maria Verónica Secreto
“Quantas noites, quantos dias o meu coração invadido de umas infindas saudades e muitas vezes derramam-se de meus olhos lágrimas por esta tua ausência por tão longos tempos”. As emocionadas palavras de Elcídia Galvão expressam a falta que lhe fazia o marido, em carta de 20 de junho de 1943. O mundo estava em guerra, e seu Cursino era um “soldado da borracha”.
A batalha em que estava envolvido não era militar, e sim um projeto econômico do governo brasileiro em parceria com os Estados Unidos: aumentar a produção de borracha amazônica para servir de matéria-prima para os fronts europeus. Nem por isso foi uma missão menos dramática. Nos dois anos de campanha na floresta tropical, morreram milhares de trabalhadores.
Na retaguarda, a angustiada espera de notícias dos maridos se passava num contexto particularmente difícil. Aquelas mulheres não estavam em casa, como escreve a mesma Elcídia: “Vivo neste núcleo de tristeza sem você”. O “núcleo” a que se refere era uma das hospedarias criadas pelo governo para dar assistência às famílias dos seringueiros.
Ela estava abrigada no núcleo de Porangabussu, em Fortaleza. A cidade era o principal ponto de recrutamento da nova política de Getulio Vargas para a Amazônia. Ao contrário da estratégia de colonizar a região, promovida desde a década de 1930, a idéia agora era explorar um único recurso o mais intensamente possível: “Mais borracha em menos tempo” era o slogan da campanha. Numa região despovoada e de difícil acesso, a solução para garantir a mão-de-obra necessária foi recrutar nordestinos. Mais de 30 mil homens atenderam ao chamado para colaborar com o esforço de guerra.
Os trabalhadores tinham a opção de escolher diferentes formas de assistência à sua família. Ela podia se limitar à compra de alimentos a preços abaixo do preço de mercado, incluir o alojamento até que o contratado chegasse ao seringal ou consistir em assistência integral, com hospedagem nos barracões do Semta, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, criado em 1942 especialmente para a campanha da borracha.
Mulheres e crianças moravam em palhoças rústicas e dormiam em redes. Um conjunto de cartas atualmente reunidas no Museu de Arte da Universidade do Ceará (MAUC) nos permite conhecer as condições de vida nesses alojamentos. “Já botaram inquisição por causa do fumo”, queixa-se Elcídia Galvão em carta ao marido, dizendo preferir ser “enxotada” a abrir mão do cigarro, pois fumar e chorar eram seus únicos confortos.
Menções a esta restrição aparecem em outras cartas, assim como o nome da responsável por atazanar a vida das abrigadas: Ivete, a “mulher do doutor Pinto”. Joana Abreu desabafa com seu esposo Guilhermino: “A mulher do doutor Pinto tem implicado com o fumo”, e acrescenta que tem passado seus dias “horrivelmente”. Escrevendo a seu Abel, Maria Filisolina de Abreu menciona uma convivência sofrida: “Aqui sou uma desprezada”. Ela diz que os problemas começaram quando o doutor Pinto levou a mulher para o núcleo e esta “inventou umas leis que não podem ser criadas”. Como não obteve êxito em proibir o fumo, decidiu cercar um dos barracos para as fumantes. Corria o boato de que mulheres e crianças seriam transferidas para outro núcleo, e a terrível dona Ivete estava cotada para dirigi-lo. Se isso acontecesse, previa Filisolina, começaria uma “guerra civil”.
Quem cuidava da correspondência era a diretora do núcleo, Regina Frota. Foi com ela que os trabalhadores conversaram antes de partir, e nas cartas deles fica evidente o sentimento de respeito e gratidão que nutriam por ela. A figura maternal de dona Regina foi muito importante em seu julgamento sobre o núcleo e na decisão de empreender a viagem sozinhos. Tinham certeza de que suas famílias seriam bem amparadas.
Por isso a surpresa ao receberem as queixas das esposas. O seringueiro José Rodrigues de Carvalho, do núcleo de Belém, escreveu a Regina Frota pedindo notícias urgentes do estado de sua família. Isso porque um “fulano” havia recebido carta da mulher dizendo que ela e as filhas estavam passando fome. “Além de vossa mercê já ter feito muita fineza (…) não acredito (…) acho impossível”, comenta José Rodrigues, rogando que Regina desmentisse os “dizeres” que chegavam do Ceará.
Alfredo Mesquita de Oliveira, de Manaus, pede um favor à diretora do núcleo: se as mulheres tiverem de trabalhar, que dêem serviços mais “maneiros” à sua esposa, Antonia Araújo, e que seja permitido a ela levar as filhas consigo. Ele ficara sabendo que as mulheres iriam fazer tijolos, telhas e “trabalhar de enxada”. Sua Antonia não tinha esse costume, e ele alega ainda que não era esse o combinado. “Quando eu fui fazer a ficha de família, falamos em trabalhos maneiros como tem de fazer rendas e engomar bordados, criar galinhas e diversos maneiros”.
Ele não foi o único a mencionar o contrato assinado. Os trabalhadores levavam a sério aquele pedaço de papel, até porque o texto mencionava 20 vezes a palavra “assistência”. As mulheres do núcleo Porangabussu também sabiam que não estavam ali de favor. Sua pobreza provavelmente levou os contratantes a acreditar que elas aceitariam qualquer condição. Não era bem assim. Essas mulheres não se conformavam com um prato de comida balanceado por uma nutricionista, e não fariam qualquer trabalho por um teto e uma cama limpa. Elas tinham alguns costumes que pretendiam manter. Queriam fumar e estavam cientes de que era o trabalho de seus maridos que as mantinha. Não sentiam qualquer tipo de agradecimento pela “assistência” recebida.
Mas sua situação era tão ruim que muitas queriam sair dali de qualquer jeito. Em outra carta para Cursino, Elcídia Galvão anuncia: “Se você não tomar providência aí com o chefe eu aqui tomo, retirando-me nem que seja para a Emigração Getúlio Varga (sic), e quando menos você espera eu chego como aflagelado (sic) ainda no Pará”. Elcídia referia-se à Hospedaria Getulio Vargas. Inaugurada em março de 1943, era uma construção “moderna”, planejada para atender à demanda da guerra em matéria de emigração, mas também para ser permanente, proporcionando hospedagem e alimentação aos flagelados que periodicamente chegavam a Fortaleza durante as secas. Ser “aflagelado”, como anunciava Elcídia a seu marido, era posicionar-se num lugar de extrema inferioridade.
A batalha da borracha chegava a um momento crítico. Milhares de seringueiros haviam desaparecido. A maioria teria morrido vítima de assassinatos, doenças tropicais e maus-tratos, mas nem os órgãos do Estado sabiam informar seu paradeiro. Em novembro de 1943, o ministro João Alberto, coordenador da Mobilização Econômica, emitiu uma portaria na qual comunicava a anulação do contrato firmado entre o Semta e a Rubber Development Corporation, entidade norte-americana responsável pela política da borracha. O ministro anunciou a criação de um novo órgão para tratar da questão: a Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (Caeta). Uma de suas primeiras ações foi cortar a assistência às famílias.
As mulheres se mobilizaram contra a medida. Um grupo do Crato (CE) enviou carta ao presidente Getulio Vargas denunciando o fim do auxílio, no lugar do qual eram oferecidas passagens para o Amazonas, a fim de, supostamente, se encontrarem com seus maridos – dos quais não sabiam se ainda estavam vivos, muito menos seu endereço. Outras 54 mulheres de Mossoró (RN) também se dirigiram ao presidente por meio de telegrama. Elas se apresentavam como esposas, mães, irmãs e noivas dos seringueiros recrutados, e invocavam os argumentos do voluntariado e o status de “soldado” – que, em lugar de metralhadora, carregava nas costas a mochila e o machadinho para abrir os cortes na seringueira – para fazer suas demandas. Em vão.
Em 1946, foi formada uma CPI para investigar o desastre da campanha da borracha. As autoridades dos vários órgãos convocadas para depor não se entendiam nem sobre o número de trabalhadores recrutados: as estimativas variavam entre 34.423 e 53.399 seringueiros e parentes. O que apenas confirma o desleixo do governo para com seus “soldados”.
Foi uma grande tragédia feita de pequenas tragédias. Famílias se dispersaram e se despedaçaram. Muitas sequer conseguiram se comunicar. Foi o caso de Elcídia, Joana e Maria Filisolina. Suas cartas só estão hoje reunidas em um único acervo porque nunca foram enviadas. Sem saber, queixavam-se ao vento.
Maria Verônica Secreto é professora de História na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autora do livro Soldados da Borracha: trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no Governo Vargas. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.
Saiba Mais - Bibliografia:
GUILLEN, Isabel C.M. Errantes da selva. Histórias da migração nordestina para a Amazônia. Recife: Editora da Ufpe, 2006.
MORALES, Lúcia Arrais. Vai e vem, vira e volta. As rotas dos soldados da borracha. São Paulo: Annablume/Fortaleza: Secult, 2002.
WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. São Paulo: Hucitec/Editora da USP, 1993.
Saiba Mais - Filme:
“Borracha para a vitória”, de Wolney de Oliveira (Bucanero/TV Ceará /TV Cultura, 2004), disponível no site: www.ac.gov.br/home/videos/borracha.html
A pensão: dois salários
Os soldados da borracha tiveram de brigar durante décadas para receber seus direitos. Somente em 1988 os sobreviventes passaram a ganhar uma pensão vitalícia. O valor: dois salários mínimos. E desde que comprovem situação de “carência econômica”.
O benefício inclui os seringueiros que não foram “mobilizados” pelo Semta ou pela Caeta. Basta provar o exercício da atividade naquela época. Foi o que fez Francisco Barbosa Cavalcante, nascido em 1921 em “Camuran”, um dos locais de extração do látex na Amazônia. Com uma testemunha que disse tê-lo visto cortando seringa durante a Segunda Guerra, ele conquistou em 2006 sua pensão no INSS.
Ainda estão vivos mais de 10 mil soldados da borracha, todos com cerca de 70 anos. Em maio deste ano, renovaram-se as esperanças de uma compensação mais digna: a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de emenda à Constituição que contempla os seringueiros com os mesmo benefícios concedidos aos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial, cuja aposentadoria equivale ao soldo de segundo-tenente das Forças Armadas. A proposta segue em tramitação.
Disponível em Revista de História
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