Partindo do cenário político na América do Sul, pesquisadora relembra a mudança da identidade social da mulher no século XX. Será que por estarem no poder elas precisam governar para as minorias?
Em fins do século XIX, Freud previu três destinos para as mulheres: a timidez neurótica e infeliz, a homossexualidade, e o caminho mais normal, a resignação. De lá pra cá, foram tantas as transformações na ciência, nas relações de gênero, de classe, e de trabalho, no entendimento sobre o sexo e os sexos, nos padrões ocidentais de comportamento, nas percepções sobre o bem e o mal. Vivendo, adaptando-se, entregando-se às possibilidades abertas pelo mundo democrático, e negociando com os novos mecanismos de controle do corpo e do pensamento, as mulheres executaram um movimento para fora dos seus lugares tradicionais na casa, no trabalho, na rua ou na cama. Mas isso não ocorreu sem que todo o resto se movesse também.
Talvez, Freud se surpreendesse com as conquistas do movimento feminista: diferenças biológicas entre homens e mulheres não significam diferenças de talento, capacidade de trabalho e de grandeza intelectual. Isso não tem nada de novo, como já mostraram as trajetórias de Catarina da Rússia e Maria Antonieta no século XVIII e Margaret Thatcher no XX. Possivelmente, nascidos entre a casa grande e a senzala, como já assinalava Gilberto Freyre, os povos latino-americanos, produtos de uma combinação inédita entre o meio e uma cultura híbrida, antes de tudo comemoraram a chegada de mulheres ao poder. Michele Bachelet no Chile, Cristina Kirchner na Argentina e Dilma Roussef no Brasil aparecem na nossa cultura como se tivessem necessariamente o compromisso com a transformação da vida dos excluídos, das minorias, dos pobres. A lógica desse pensamento é bastante parecida com aquela que coloca sobre os ombros de Barack Obama fardos tão impossíveis como a intenção de promover a paz entre Israel e Palestina.
Em grande parte, tal sectarismo é tributário do mítico maio de 1968, quando a diferença foi alçada a categoria de valor mais importante seja na vida política e social, seja para o indivíduo. Aos poucos, a diversidade foi sendo enquadrada institucionalmente, e com a participação dos movimentos feministas, negros, indígenas e homossexuais tornou-se a forma mais comum de identificar o outro e a si mesmo.
Dois anos de governo Dilma
Após dois anos de governo, é possível dizer que a presidenta brasileira está longe de reconstruir os alicerces da política no Brasil: personalismo, paternalismo e predomínio de interesses privados em projetos supostamente nacionais. O fato de José Sarney ter assumido a presidência temporária enquanto Dilma está fora do país parece um bom exemplo. Nos anos de 1970 Sarney integrava a ARENA- Aliança Renovadora Nacional – partido de sustentação da ditadura militar que, na mesma época torturava a guerrilheira “Wanda”, hoje presidente. Ao que tudo indica a memória das mulheres poderosas não tem nada de diferente de qualquer outro ser político do século XXI, ela está à venda.
E eis um novo elemento a ser considerado caso Freud quisesse abrir, hoje, outros caminhos para o futuro feminino: o mercado. A transformação do sonho da liberdade e da onipotência sobre o destino em mercadoria tem sido acompanhada por uma subjetividade tirânica, inalcançável e também neurótica, embora profundamente encantadora. Ava Gardner, Marylin Monroe, Betty Grable e Sandra Dee, as pin-ups americanas que estamparam os maços de cigarro, calendários e pôsteres durante a Segunda Guerra, seriam apenas o começo de um mecanismo que cria padrões de beleza e comportamento específicos para as mulheres atribuindo-lhes um valor de acordo com a proximidade ou afastamento desses modelos. Já em 1913, o escritor austríaco Robert Musil deu ao seu Homem sem qualidades Leona, a amante de beleza aristocrática que deixava os homens boquiabertos, tomados de um desejo muito diferente do que “lhes inspiravam as atrevidas cantoras com penteados de dançarina de tango”. Ao descrever sua intimidade, revela, contudo, uma peculiaridade da bela moça: era incrivelmente comilona, vício que há muito saíra de moda. Nela, os instintos da personalidade ligaram-se não ao coração, mas ao tractus abdominalis, como conta o autor.
Talvez não esteja na política stricto sensu, na reivindicação prática de uma agenda confusa que aponta para liberdade, antiviolência e legalização do aborto, o melhor exemplo de amadurecimento das mulheres em suas relações sociais. Muito arriscadamente, afirmo que está no campo afetivo das pequenas relações humanas, das contínuas contingências, o espaço para a discussão dos limites da natureza humana e da matéria bruta da poesia. Espaço único onde é possível estabelecer relações inéditas e proposições práticas para a vida em sociedade. A construção e o combate às ideologias e conceitos não tem garantido a compreensão do uso sentimental e cotidiano que deles é feito; garante a afirmação retórica da igualdade entre homens e mulheres e a conquista de leis afirmativas e exclusivamente protetoras do sexo feminino, mas não assegura a descoberta de modos de viver e conviver mais honestos e plurais.
Da mácula de Eva, ambiguamente sedutora e responsável pelas origens do pecado, à associação natural com a feitiçaria em tempos de inquisição, passando pelas teses biológicas de superioridade masculina na era da razão, a privação ao âmbito doméstico durante a modernidade, a falta de voz, e a condenação da sexualidade desde sempre impostas pela boa educação de cada época. As mulheres compartilham desde muito tempo uma identidade histórica marcada por experiências universais de exclusão, violência e subserviência, assim como enfrentam hoje dificuldades ligadas a uma rotina velha conhecida dos pater famílias, acostumados a diferentes relações de trabalho, ao compromisso com a qualidade da vida familiar, e com a marginalidade das ruas.
Em todos os casos, os processos que levaram ao desaparecimento as históricas situações de opressão estiveram ligados aos sentimentos, às paixões que levaram padres a largar a batina, a miscigenação pelo desejo mais forte do que o mais português dos preconceitos. Não são poucos os exemplos de coragem para enfrentar a vida moderna, de amor à causa revolucionária diante das torturas mais humilhantes, ou o respeito por si mesma, não como um lesbianismo narcisista, mas como uma capacidade de se apaixonar, de ter e querer dar prazer a partir das sensações, de uma ética profundamente individual, mais do que a partir das tradições culturais e dos padrões contemporâneos. Aliás, a atual liberdade em relação ao homoerotismo tem menos de ruptura do que falta de uma discussão histórica mais ampla, que aborde as relações femininas entre si e com a sociedade de uma perspectiva menos preocupada com demarcações de classe, gênero ou raça. O historiador Ronaldo Vainfas, por exemplo, trata do cotidiano íntimo das mulheres que, no Brasil colonial, experimentavam relações homossexuais por diversas razões como o puro desejo, a coisificação na relação com os homens, o dia a dia de mexericos, trocas de segredos, alcovitagens entre damas, escravas e mulheres livres, ou ainda a curiosidade de senhoras às vésperas do casamento.
Marcha das vadias
Não se trata de descobrir raízes de determinados comportamentos, ou soluções do passado para os enfrentamentos de hoje, mas de tentar entender as relações humanas do presente de maneira mais transversal, evitando estereótipos, preconceitos e marcas específicas da informação de cada época. Por exemplo, a imagem de sexo frágil que há muito recaiu sobre a mulher, contrasta profundamente com a Marcha das Vadias que em 2012 comandou passeatas de mulheres de todas as idades com seios à mostra e crachás de putas. Os grupos feministas que se vestiam de forma masculinizada e defendiam o ódio ao falo são bastante diferentes da estética mercadológica que hoje vende uma identidade homossexual feminina e descolada. Todos, sem exceção, são representações dos modos como esses diferentes grupos se relacionaram com a sociedade, com homens, com a família, com a imprensa, com a política, com o amor, etc., embora o pensamento contemporâneo sempre muito individualista e especializado tenda a compreender as imagens por si, cristalizando generalizações equivocadas e reforçando uma perspectiva evolucionista ou retrógrada conforme os interesses em jogo.
Se ser livre hoje é ser vadia, será preciso entender como o termo que estigmatizou a mulher rebaixando-a, na prática, ao lixo, à mercadoria descartável, pode ajudar a reconfigurar as experiências femininas em sociedade, recriando novos limites para o que é importante, bonito, patológico, obsceno, saudável, erótico, etc.
Disponível em RHBN
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