O Concílio Vaticano II tentou manter o catolicismo sintonizado com um mundo que mudava vertiginosamente. Mas terá sido bem interpretado?
Rodrigo Coppe Caldeira
Até a década de 1960, o padre celebrava a missa em latim e de costas para os fiéis. Neste mesmo período, a Igreja Católica afirmou que a separação entre o Estado e a religião era um fruto positivo da filosofia moderna. Estas e outras profundas transformações abalaram alguns importantes alicerces em que a Igreja de Roma se baseou a partir do século XVI, com o Concílio de Trento (1545-1563). Era a crise da identidade tridentina, levada a termo com a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), o maior evento religioso do século passado, a 21ª grande reunião de bispos e alguns religiosos de todo o mundo com o intuito de discutir os rumos que a Igreja deve tomar.
A Igreja foi se isolando e se fechando desde o século XVI, primeiramente como reação ao cisma protestante, que adveio das inquietações teológicas de Martinho Lutero (1483-1546), e, posteriormente, ao pensamento liberal e à doutrina comunista. Tornava-se uma “fortaleza sitiada”, interpretando a emergência da modernidade como um grande mal que se abatia sobre o cristianismo. No século XIX e no início do XX, esta tendência foi reforçada ainda mais com os papas Gregório XVI (1831-1846), Pio IX (1846-1878) e Pio X (1903-1914), que lançaram inúmeras condenações contra os principais elementos da cultura moderna, ficando conhecida como ultramontana, “detrás os montes”, ou seja, referente àqueles que estão aquém dos Alpes, com Roma e apoiando todas as decisões do Sumo Pontífice. Porém, essa tendência passou a conviver com diferentes movimentos no seio do catolicismo que, ao contrário, defendiam uma Igreja capaz de dialogar com o mundo, mais aberta à participação do fiel em suas atividades, e que respondesse de forma mais plausível aos desafios do mundo.
Quando o Concílio Vaticano II foi convocado, o mundo já estava bem diferente daquele dos séculos anteriores: já vira duas grandes guerras, o surgimento do nazifascismo, a emergência e a consolidação de Estados comunistas por todo o mundo, a concretização das democracias liberais, o desenvolvimento dos meios de comunicação, a liberalização moral, o pluralismo religioso e a diminuição da influência das instituições religiosas na esfera pública. O Vaticano II foi a resposta da Igreja aos novos desafios colocados pelo novo mundo que surgia. Ou seja, uma grande tentativa de atualizar a Igreja – realizar seu aggiornamento, palavra em italiano que significa atualização, muito utilizada pelos bispos e religiosos participantes do concílio.
O fato é que este concílio se diferenciou de todos os anteriores, pois não tinha sido convocado para condenar uma forma de se pensar e agir, nem para promulgar dogmas, como acorrera nos vinte já então realizados. Em quatro anos, de 1962 a 1965, inúmeras questões doutrinais, morais e políticas foram debatidas em uma assembleia instalada na nave central da Catedral de São Pedro, no Vaticano, com a presença de milhares de bispos e religiosos, vindos dos quatro cantos do planeta. A Igreja precisava dar uma resposta a esse mundo em transformação, reafirmar seu papel na contemporaneidade e apontar novos rumos. Precisava demonstrar que não era uma instituição tradicional e milenar já sem contato com a realidade circundante e sem ressonância no mundo.
Foram debatidos temas que mudaram significativamente o rosto do catolicismo. Pretendia-se passar de uma Igreja fechada em si mesma a uma Igreja aberta ao mundo, capaz de seguir sua missão, levando a mensagem evangélica a todos os confins do mundo, e assim aprender com ele. Uma profunda mudança de compreensão de si mesma, que ainda se continua a sentir.
A assembleia produziu quatro constituições, nove decretos e duas declarações. Um ponto de seus documentos mais centrais, a Constituição Pastoral Gaudium et spes (07/12/1965), afirma que a Igreja “está firmemente persuadida de que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não só dos homens em particular, mas também da sociedade, dos seus dotes e atividades (…) caminha juntamente com a humanidade inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena”. Com essa ideia, entendia-se o mundo moderno não mais como um inimigo a ser combatido, mas – naquilo em que trazia de positivo em relação ao homem e seus maiores dramas – um aliado.
As principais questões discutidas foram as litúrgicas, isto é, aquelas relativas aos ritos do catolicismo; questões ecumênicas, sobre as relações entre os cristãos separados; sacerdócio; a missão; a educação; o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa. Entre estes temas, uma nova perspectiva é assumida, consolidando a imagem de “Povo de Deus”, a imagem de todos o fiéis, que agora são compreendidos como aqueles que exercem um “sacerdócio comum nos Sacramentos”. O lugar dos leigos é elevado a uma importância jamais assumida na história do catolicismo.
Mas o caminho que levou à promulgação dos textos finais e seus avanços foi marcado por tensões entre sensibilidades diversas no interior do concílio. Logo apareceram grupos que buscaram orientar o concílio em suas decisões. Dois deles se mostraram extremamente aguerridos para fazer valer suas posições nos resultados finais: um, mais progressista, com a presença maciça de bispos de Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda e da América Latina, inclusive do Brasil, como Hélder Câmara (1909-1999), que defendiam uma distensão entre a Igreja e os valores modernos; e outro, que pode ser chamado de conservador e era minoria, com a presença marcante de italianos, ligados à Cúria Romana, franceses, norte-americanos e também alguns brasileiros, como Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e Antônio de Castro Mayer (1904-1991). Além destes três bispos, que desempenharam importantes papéis no concílio, o Brasil teve mais 243 representantes, entre eles José Ivo Lorscheiter (1927-2007), Jaime de Barros Câmara (1894-1971), Eugenio de Araujo Sales (1920-2012) e Clemente José Carlos Isnard (1917-2005).
Durante as reuniões, houve um crescente embate entre essas duas concepções, que acabou resultando em um movimento de conquista das mentes dos padres conciliares a partir de palestras, encontros e até mesmo panfletagem. O grupo que saiu “vitorioso” do concílio foi aquele defensor do diálogo com o mundo moderno, reconhecido como a “maioria conciliar”, pois conseguiu inserir nos textos finais a sensibilidade que os marcava, especialmente a compreensão de que o concílio não deveria condenar abertamente nenhuma corrente moderna de pensamento. Porém, a “minoria conciliar” – desejosa, entre outras coisas, de um novo dogma mariano, da manutenção da liturgia do Concílio de Trento e de uma condenação formal do comunismo – conseguiu inserir seus posicionamentos em alguns trechos dos textos finais.
As resoluções conciliares foram encontrando aplicação progressiva sob o comando do papa Paulo VI nos anos que se seguiram ao final do concílio, em dezembro de 1965. Porém, as posições contrárias presentes nos debates conciliares estenderam-se ao período posterior. Por um lado, grande entusiasmo e otimismo disseminavam-se em alguns meios, e, junto de alguns deles, também posicionamentos teológicos e litúrgicos que excediam em muito as determinações do concílio. De outro, aqueles não tão otimistas, defensores de uma aplicação calma e cautelosa, além dos que, como Marcel Lefebvre e Antonio de Castro Mayer, radicalizam seu discurso assumindo uma posição anticonciliar, afirmando inclusive ser o concílio ilegítimo.
Hoje, entre os historiadores do catolicismo, há discussões sobre os significados do Concílio Vaticano II, sua atualidade, ou se um novo concílio se faz necessário. A questão central se debruça sobre os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI. O primeiro cumpriu e o segundo cumpre os programas do concílio? Ou, ao contrário, como defendem alguns, eles dificultaram sua aplicação ao interpretar o concílio de maneira restrita?
* Rodrigo Coppe Caldeiraé professor da PUC-MG e autor de Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (CRV, 2011).
Disponível em RHBN
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