Monarca republicano, imperador cidadão, abolicionista num país escravocrata, intelectual num mar de analfabetos. Interprete-o a gosto
Lorenzo Aldé
Como é possível que uma das figuras mais marcantes e conhecidas de nossa História permaneça associada a tamanhas contradições? Nem os mais eficientes estudos e biografias são suficientes para desfazer essa impressão: D. Pedro II é, sobretudo, um personagem incompreendido. Ou compreendido apenas em parte. Juntar seus pedaços significa esbarrar, sempre, em grandes enigmas.
Para as almas que só se aquietam diante de consensos, pode ser agradável concluir que o imperador foi um governante querido e respeitado de forma quase unânime em seu tempo. Mas sempre há quem conteste o consenso. Em 1925, em meio aos festejos laudatórios em torno do centenário de D. Pedro II, o ainda jovem sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) fez uma conferência pública dedicada a demolir o mito. Em suas palavras, o Império teria sido um “período melancolicamente virtuoso”. Culpa do imperador, responsável por implantar entre nós uma “ditadura da moralidade, com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava”. Não é de estranhar que Freyre – cuja obra enalteceria a miscigenação que forjou no Brasil uma cultura inédita no mundo – se incomodasse com os modos excessivamente europeizados do imperador. Figura impávida e inatacável, afeita mais às letras e às ciências do que ao contato social, mais às leis e às normas do que às relações afetivas e parentais, D. Pedro II contrariava a brasilidade festiva e manemolente enaltecida por Freyre. Seus valores puritanos seriam alienígenas à cultura nacional, como “um pastor protestante a oficiar em catedral católica”.
Herança do Império
Enquanto o imperador valorizava alguns ideais republicanos, nossa República bebeu da tradição monárquica
Rodrigo Elias
A estátua equestre do marechal Deodoro, no Centro do Rio de Janeiro, dá um ar triunfal à República de 15 de Novembro. Não é uma cena violenta: o experiente militar não empunha espada nem está em batalha. Imponente, acena para o povo com seu quepe. A base da estátua, verdadeiro colosso, cria uma imagem sólida e perene para o regime. A consolidação da República, entretanto, se deu de outra maneira.
Nossos dois primeiros presidentes foram militares. E nenhum dos dois era republicano, em qualquer sentido que se possa atribuir ao termo. O alagoano Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), veterano da Guerra do Paraguai, monarquista convicto e amigo do imperador, não pensava em derrubar o regime – muito menos em ser presidente. Tratava-se, naquela ocasião, de derrubar o gabinete liberal do visconde de Ouro Preto, durante o contexto da chamada Questão Militar: republicanos que se aproximaram de Deodoro espalharam a falsa notícia de que o ministro ordenara sua prisão. Mas a decisão do líder militar de extinguir a monarquia decorreu da informação de que outro político liberal, o gaúcho Gaspar da Silveira Martins, seu inimigo pessoal (por um típico caso de rabo de saia), assumiria o novo gabinete. Assim, por motivos nada republicanos, decretou-se a República.
O primeiro desafio, portanto, foi fazer com que ela vingasse. A família imperial foi banida (na calada da noite), uma Constituição redigida e promulgada (em 1891) e, formalmente, instaurada uma descentralização administrativa. Apenas formalmente: embora a Constituição assegurasse o federalismo, os governos locais não podiam entrar em contradição com o governo central. A República nasceu, na prática, sob ditadura militar. Que o digam os que esboçaram oposição durante o segundo período presidencial (1891-1894), sob a mão de ferro do marechal Floriano Peixoto, alagoano como Deodoro: censura à imprensa, perseguição política, prisões, execuções.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Em breve, resposta.