A respeito da
história da África Antiga, parece desde já possível tirar certas conclusões,
formular algumas hipóteses, muito embora – nunca é demais sublinhá-lo – um
trabalho considerável ainda esteja por ser feito.
Os capítulos
consagrados ao antigo Egito demonstram que antes do terceiro milênio da Era
Cristã já se havia atingido ali um nível intelectual, social e material mais
elevado do que na maioria das outras regiões do mundo. Remontando à noite dos
tempos, original e rica de iniciativas, a civilização do antigo Egito – que
nasceu da conjunção de um meio favorável e de um povo decidido a dominá-lo com
real conhecimento – durou quase três milênios. O papel dos elementos naturais
no desenvolvimento dessa civilização é sem dúvida importante e notável, mas
apenas na medida em que os egípcios lutaram para dominar seu meio ambiente,
superar as dificuldades e os problemas por ele colocados e pô-la a serviço de
sua prosperidade.
Com a invenção da escrita, no curso do período pré-dinástico, o Egito antigo deu um grande passo no sentido da civilização. A escrita ampliou o campo da comunicação humana, abriu as mentes, estendeu os conhecimentos. Sua invenção foi mais importante do que qualquer êxito, militar ou de outra ordem, dos egípcios. Os primeiros caracteres remontam aproximadamente ao ano 3200 antes da Era Cristã; ainda hoje a língua copta é utilizada nas igrejas coptas do país. Pode dizer-se que essa língua, que atravessou cinquenta séculos, é o mais antigo idioma do mundo. A invenção da escrita foi a principal etapa que os egípcios passaram na longa trajetória que conduz à civilização e à prosperidade.
Nosso conhecimento
sobre o antigo Egito deve-se principalmente à descoberta da escrita e ao
estabelecimento de uma cronologia. Já não utilizamos hoje o mesmo sistema,
porquanto os antigos egípcios datavam os acontecimentos cuja lembrança
desejavam conservar em função do rei que governava na época. Mas, com a ajuda
desse sistema, o historiador Manêton de Sebennytos pôde classificar os
soberanos do Egito em trinta dinastias, de Menés a Alexandre, o Grande. Os
eruditos modernos reagruparam várias dinastias sob o nome de Impérios: há,
assim, o Antigo Império, o Médio Império e o Novo Império.
Embora o Egito
estivesse aberto às correntes culturais vindas sobretudo do Oriente, este
volume mostra que, em grande medida, a civilização repousa em bases africanas;
mostra igualmente que o Egito, que é uma parte da África, foi outrora o
principal centro da civilização universal, de onde se irradiaram a ciência, a
arte e a literatura, influenciando principalmente a Grécia. Nos domínios da
matemática (geometria, aritmética, etc.), da astronomia e da medição do tempo
(calendários, etc.), da medicina, da arquitetura, da música e da literatura (narrativa,
lírica, dramática, etc.), a Grécia recebeu, desenvolveu e transmitiu ao
Ocidente boa parte da herança egípcia
– do Egito faraônico e ptolomaico. Por intermédio da Grécia, a
civilização do antigo Egito entrou em contato não apenas com a Europa, mas também
com a África do Norte e mesmo com o subcontinente indiano.
As opiniões se
dividem quanto ao problema do povoamento do Egito, objeto de estudos sérios e
aprofundados. Espera-se que os grandes progressos realizados na metodologia da
ciência antropológica permitam estabelecer, num futuro próximo, conclusões
definitivas sobre o assunto.
Segundo as fontes
mencionadas neste volume, a Núbia esteve, desde os primeiros tempos,
estreitamente ligada ao Egito por uma série de semelhanças: semelhança física,
em primeiro lugar, principalmente entre a Núbia e o extremo sul do Alto Egito;
semelhança histórica e política, cuja importância intrínseca foi
consideravelmente reforçada pelo aspecto físico; semelhança social, cultural e
religiosa. Assim, do começo da primeira dinastia até o fim do Antigo Império, os
egípcios se mostraram muito interessados pelo norte da Núbia, por eles considerado
como elemento complementar de seu próprio país. Organizaram trocas comerciais
com os núbios, exploraram os recursos naturais do território e responderam a
toda resistência núbia com o envio de missões militares. Algumas expedições do
Antigo Império, dirigidas por grandes pioneiros da viagem e da exploração, como
Ony, Mékhu, Sabni e Khuefeher (Herkhuf), penetraram no Saara e talvez na África
central.
O interesse do Egito
pela Núbia traduziu-se particularmente na construção de numerosos templos, que
se destinavam, a par de sua função religiosa, a ilustrar a civilização e a
força do Egito, o poder e a santidade de seu soberano. Tal interesse explica-se
sobretudo pelo fato de a Núbia ter constituído, desde tempos muito antigos, o
lugar de passagem das mercadorias comerciadas entre o Mediterrâneo e o coração
da África. Aliás, podem-se ver aí as ruínas de fortalezas dos períodos
faraônicos, destinadas a proteger os comerciantes e a manter a paz nessas
regiões.
Contudo, desde os
tempos pré-históricos a Núbia constituía uma unidade geográfica e social,
sempre habitada por povos cuja cultura se assemelhava à do alto vale do Nilo.
Mas a partir de 3200 antes da Era Cristã os egípcios começaram a ultrapassar
seus vizinhos do sul no domínio cultural e a progredir a passos de gigante no
sentido da civilização; só muito tarde iria a Núbia segui-los. A civilização de
Kerma, rica e próspera, floresceu na Núbia na primeira metade do segundo
milênio antes da Era Cristã. Embora fortemente influenciada pela cultura
egípcia, tinha ela suas próprias características locais. Após o início do primeiro
milênio antes da Era Cristã, no momento do declínio do poderio egípcio,
instalou-se uma monarquia autóctone (com a capital em Napata), que posteriormente
viria a reinar no Egito. A dominação núbia no Egito, que durou cinquenta anos
no decorrer do sétimo período (primeira parte da XXV dinastia), realizou a
união entre os dois países. A fama dessa grande potência africana era excepcional,
como testemunham os autores clássicos.
Após a transferência
da capital para Méroe, a Núbia conheceu, até quase o século IX, um período de
progresso e prosperidade e restabeleceu alguns contatos com seus vizinhos. A
expansão da monarquia meroítica a oeste e ao sul, seu papel na difusão das
ideias e das técnicas e na transmissão das influências orientais e ocidentais
ainda estão em fase de estudo. Por outro lado, mesmo após a publicação deste
volume, seria conveniente reanimar os esforços empreendidos para decifrar a
escrita meroítica. Ter -se -ia assim acesso a informações diversas contidas em
cerca de 900 documentos, e disporíamos, ao lado da língua faraônica, de uma
nova língua clássica de caráter estritamente africano.
A Núbia permaneceu
como monarquia cristã até a chegada do islamismo. Foi então invadida pela
cultura islâmica árabe e perdeu muito do seu caráter tradicional.
Em vista de sua
situação geográfica, a Núbia desempenhou um papel especial – por vezes involuntariamente
– como intermediária entre a África central e o Mediterrâneo. O reino de
Napata, o império de Méroe e o reino cristão fizeram da Núbia o ponto de
ligação entre o norte e o sul. Graças a ela, a cultura, as técnicas e os
instrumentos se expandiram até as regiões vizinhas. Prosseguindo incansavelmente
nossas pesquisas, talvez possamos descobrir que a civilização egípcio-núbia
desempenhou na África um papel análogo ao da civilização greco-romana na
Europa.
A história da Núbia
antiga ressurgiu recentemente, quando da elaboração do projeto da barragem de
Assuã. Logo se tornou óbvio que tal barragem implicaria a submersão de
dezesseis templos e de todos os túmulos, capelas, igrejas, inscrições na rocha
e demais sítios históricos da Núbia, que o tempo até então deixara quase
intactos. A pedido do Egito e do Sudão, a Unesco lançou em 1959 um apelo a
todas as nações, a todas as organizações e a todos os homens de boa vontade,
pedindo -lhes ajuda técnica, científica e financeira para salvar os monumentos
da Núbia. O sucesso da campanha internacional que se seguiu salvou a maior
parte desses monumentos, que representam séculos de história e encerram a chave
das primeiras civilizações.
A realização de novas
escavações arqueológicas nos arredores do sítio de Kerma, onde os ritos
funerários eram idênticos, em particular, aos de Gana, da região de Dongola e
dos oásis do sudoeste, poderia dar-nos uma ideia melhor sobre algumas
afinidades culturais arcaicas e, talvez revelar-nos outros elos da corrente
cultural entre o vale do Nilo e o interior da África. De qualquer modo, poderia
fornecer-nos maiores esclarecimentos acerca do itinerário seguido por exploradores
do Antigo Império, como Herkhuf.
A princípio, sob
influência da Arábia do Sul, a Etiópia forjou uma cultura cuja força unitária é
pouco conhecida. Fontes materiais que remontam ao segundo período pré-axumita
provam a existência de uma cultura local que assimilara influências estrangeiras.
O reino de Axum, que
durou aproximadamente mil anos a partir do primeiro século da Era Cristã,
assumiu uma forma toda particular, diversa da do período pré-axumita. Como a do
Egito antigo, a civilização de Axum era fruto de um desenvolvimento cultural
cujas raízes mergulhavam na pré-história. Era uma civilização africana,
produzida por um povo da África. No entanto, podem-se encontrar na cerâmica do
segundo período pré-axumita traços de influência meroítica.
Nos séculos II e III,
a influência meroítica foi predominante na Etiópia. A estela de Axum, há pouco
descoberta, com o símbolo egípcio da vida (Ankh) e objetos ligados a Hátor,
Ptah e Hórus, ao lado de escaravelhos, mostra a influência da religião egípcia
de Méroe sobre as crenças axumitas.
O reino de Axum era
uma grande potência comercial nas rotas que ligavam o mundo romano à Índia e a
Arábia à África setentrional; era também um grande centro de informação
cultural. Até o presente, estudaram-se somente alguns aspectos da cultura axumita
e de suas raízes africanas. Muita coisa ainda deve ser feita.
A chegada do
cristianismo provocou, como no Egito e em Méroe, grandes mudanças na cultura e
na vida dos etíopes. O papel do cristianismo e sua persistência na Etiópia, sua
influência no interior e no exterior desse território, são assuntos
interessantes que merecem estudo mais aprofundado.
Considerando os
limites de nossas fontes históricas, devemos esperar, para melhor conhecer a
evolução da cultura líbia e o modo como reagiu à introdução da civilização
fenícia, que os arqueólogos e os historiadores tenham progredido em seus
trabalhos.
Em consequência,
julgamos que a entrada do Magreb na história documentada ocorre com a chegada
dos fenícios à costa da África do Norte, ainda que os contatos dos cartagineses
com os povos do Saara e mesmo com aqueles que habitavam mais ao sul permaneçam
mal conhecidos. Note-se, aliás, que a cultura da África do Norte não é devedora
apenas dos fenícios: sua inspiração original é essencialmente africana.
Foi durante o período
fenício que o Magreb entrou na história geral do mundo mediterrâneo; a
civilização fenícia comportava elementos egípcios e orientais e era tributária
de suas relações comerciais com os outros países do mediterrâneo. No último
período dos reinos da Numídia e da Mauritânia, observa-se uma evolução no
sentido de uma civilização em que as influências líbias e fenícias se mesclam.
Embora pouco se saiba
sobre o Saara e seus aspectos culturais na Antiguidade, dispomos de algumas
certezas: a aridez do clima não privou o deserto de toda vida nem de toda
atividade humana; as línguas e a escrita se consolidaram e, graças aos camelos,
cuja utilização cada vez mais se disseminou, havia meios de transporte que
permitiam ao Saara desempenhar importante papel nas trocas culturais entre o
Magreb e a África tropical.
Podemos, pois,
concluir que o Saara, longe de ser uma barreira ou uma zona morta, tinha sua
cultura e sua história, que ainda devem ser estudadas caso se pretenda
descobrir a influência permanente do Magreb sobre o cinturão sudanês. Com
efeito, sempre houve entre os países situados ao norte do Saara e a África
subsaariana contatos culturais ativos que influenciaram profundamente a
história do continente africano.
Até aqui, costumava-se
situar o início da história da África subsaariana no século XV da Era Cristã, e
isso por duas razões principais: a penúria de documentos escritos e a clivagem
dogmática que os historiadores costumam estabelecer mentalmente entre essa
região do continente, de um lado, e o Egito antigo e a África do Norte, de
outro.
A despeito das
lacunas e insuficiências das pesquisas efetuadas, este volume contribui para
mostrar a possibilidade da existência de uma unidade cultural do conjunto do
continente nos mais variados domínios.
Formulou-se a teoria
de um liame genético entre o egípcio antigo e as línguas africanas. Se as
pesquisas o confirmarem, ter-se-á a prova de uma profunda unidade linguística
do continente. A semelhança das estruturas reais, as relações entre os ritos e
as cosmogonias (circuncisão, totemismo, vitalismo, metempsicose, etc.), a
afinidade das culturas materiais, os instrumentos de cultura, são exemplos de
questões que estão a merecer estudos mais aprofundados.
Além do mais,
satisfeita a terceira condição para a redação dos volumes I e II, a saber, a
reconstituição da rede de rotas africanas desde os tempos proto-históricos, bem
como a determinação da extensão das áreas cultivadas no decorrer do mesmo
período a partir da análise de fotografias tiradas por satélite, teremos
ampliado e aprofundado nosso conhecimento sobre o grau de ocupação do solo e
sobre as relações culturais e comerciais que se estabeleceram no interior do
continente naquela época.
Um trabalho mais
extenso sobre etnônimos e topônimos deverá possibilitar a determinação de
correntes migratórias e de relações étnicas insuspeitadas de uma a outra extremidade
do continente.
* O texto faz parte da coleção História Geral da África, disponível em sua íntegra no site do Ministério da Educação.
uma oiada
ResponderExcluirexcelente!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluiramei
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