Por Mônica Trindade Canejo
Pesquisas nos maiores sítios arqueológicos da América do Sul estão revolucionando o que se definia como o passado da Amazônia pré-colonial. Parte do cotidiano dos caboclos locais, eles escondem mistérios sobre os antigos habitantes da nossa terra.
O dia amanhece com o cheiro de café recém-coado e o barulho das batedeiras manuais de açaí, vindos das pequenas casas de madeira enfileiradas na beira. Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comunidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na região do Arquipélago do Marajó, no Pará. Uma mulher me chama e, enquanto aponta um local, me fala: "Venha ver a greguinha". Aproximo-me da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo, ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos incisos realmente se assemelham a volutas gregas, caprichosamente traçadas em relevo.
Uma peça arqueológica produzida pelos índios marajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C. e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da Vila Tessalônica, esta convivência com o passado remoto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais de 40 anos. "Nessa época, tinha muito mais vasilhas. Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi quebrando com a força da água."
Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia que muitos têm de que as urnas eram potes usados para se guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. "Elas serviam para agasalhar os mortos." A vila - um pequeno alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um posto médico - está postada às margens do rio Araramã.E inocentemente plantada sobre um aterro funerário,onde possivelmente se realizavam ritos sagrados.
O fato é que, por todo o Arquipélago do Marajó, esses vestígios da passagem do homem antes da chegada dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas passou a ser ocupada por fazendas que investiam em pecuária bufalina, com a chegada dos robustos búfalos de chifres tristonhos, muitas peças passaram a ser encontradas. Durante 15 dias, fomos com nosso barco visitando diversas dessas localidades. Em todas, fragmentos de cerâmica iam avisando que, por ali, passou alguém num passado remoto.
Mas essa não é uma realidade exclusiva do Marajó. Ela se repete por toda a região. Durante quatro anos, o fotógrafo Maurício de Paiva perseguiu esse tema, acompanhando pesquisadores pela Amazônia brasileira. Foi à Santarém, Manaus, subiu o rio Negro, desceu o Solimões, embrenhou-se pelo Amapá, dormiu em redes, sentou-se à mesa do caboclo para comer açaí com farinha de tapioca.
E, além de ganhar alguns quilos e trocar o tom pálido de pele por um bronzeado caboclo em cada viagem, compreendeu por que as pesquisas estão revolucionando o que até poucos anos se definia como o passado da Amazônia pré-colonial.
Aprende-se na escola que essa era uma região de solo pobre, de florestas intocadas, o "inferno verde". Um lugar onde o homem nunca foi muito bem-vindo, com exceção de um ou outro grupo indígena, daqueles que coletavam algumas frutas, caçavam alguns animais e iam logo embora, com medo da Cobra Grande. E que é assim mesmo que deve ser, uma floresta eternamente imaculada. A questão só começou a ser revista nos anos 80, com o inicio dos estudos da norte americana Anna Roosevelt. Especialmente nos últimos 15 anos, a intensificação das pesquisas de campo está provando que havia não só muita gente em toda a Amazônia brasileira como essas pessoas estavam organizadas em sociedades sofisticadas, com complexas redes de intercâmbio cultural e econômico. Para começar, vestígios arqueológicos comprovam a passagem do homem na Serra dos Carajás e em Monte Alegre, no Pará, há cerca de11.200 anos. Nas áreas litorâneas,onde grandes aterros formados por cascas de moluscos e ossos - chamados de sambaquis - dão contada presença humana, estima-se que ocupações tenham existido há mais de 5.500 anos. Em alguns lugares, os indícios deixados nos fazem pensar até que ponto de sofisticação chegava o conhecimento desse homem ancestral.
Disponível em:
http://www.rollingstone.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Em breve, resposta.