Alice Melo
Aprovada pelo Senado no início deste mês, nova lei de cotas (PLC 180/2008) aguarda sanção da presidente Dilma Rousseff para que seja colocada em prática. A medida que obriga todas as universidades e institutos tecnológicos federais a destinarem 50% de suas vagas a estudantes de escolas públicas e, dentro disso, 25% a candidatos pretos, pardos e índios; evidencia a debilidade do ensino básico no Brasil, mas representa um grande passo para a luta contra o preconceito racial no país.
O texto começou a tramitar no Congresso no final dos anos 1990 e surgiu com intuito de reformular o sistema de ingresso universal, o vestibular. Mas o projeto foi sendo modificado com o tempo: na alvorada dos anos 2000, quando o Estado começou a implementar políticas públicas a favor de ações afirmativas, as cotas sociais e raciais passaram a ser a principal bandeira. E não é à toa: o Censo Escolar 2010 realizado pelo IBGE aponta, por exemplo, que o Brasil tem 51,5 milhões de estudantes matriculados na educação básica, sendo 43,9 milhões, estudantes das redes públicas (85,4%). Do número total de alunos que frequentam o Ensino Médio, o Censo mostra que 50,9% deles são pretos ou pardos. No ensino superior público – que possui as mais conceituadas universidades do país - 87,4% dos estudantes são oriundos de escolas particulares. Pretos, pardos e índios variam conforme o estado.
A historiadora Verena Alberti, coordenadora de documentação do CPDOC (FGV) e professora de História na Escola Alemã Corcovado (que fica no Rio de Janeiro), diz que é a favor das cotas raciais e sociais e explica que a aprovação da lei no Senado representa, sobretudo, uma reparação de uma injustiça histórica. “Agora que o Estado do Brasil é a favor da lei de cotas, está apresentando a responsabilidade de consertar o que estava errado. E muitas vezes a gente pensa que o que estava errado estava assim por herança da escravidão, como se fosse por inércia. Mas é importante ver que o Estado, depois de 1889, instituiu políticas diferenciando a população; estimulando a imigração, o embranquecimento. Nós nunca tivemos leis de segregação racial, mas tínhamos leis que proibiam manifestações afro-brasileiras, até a década de 1920, por exemplo”.
Alberti, que coordenou um projeto sobre a história do movimento negro no Brasil com base em relatos orais, acredita que a adoção do sistema de cotas não vai enfraquecer o ensino superior brasileiro ou invalidar políticas de melhoria na educação básica pública e acrescenta: “O curioso é que somos orgulhosos da mistura cultural no Brasil, mas quando existe a mistura física, essa miscigenação não é tão valorizada. Continua havendo o preconceito racial. Ainda que raça seja um conceito biologicamente inexistente. Acho que há necessidade de pessoas se acostumarem que negros possam fazer parte das camadas médias da sociedade, porque enquanto isso não acontecer, pessoas vão continuar morrendo devido a crimes motivados por racismo”.
Senado aprova PLC 180/2008 em seção realizada no dia 7 de agosto |
O relator do projeto aprovado na Casa, senador Paulo Paim (PT/RS) afirma que o sistema de cotas nacional vai fortalecer o ensino superior em seus dez anos de vigência. “Hoje, ficou comprovado pelas pesquisas que os cotistas têm, na maioria dos casos, notas iguais ou maiores do que os não cotistas nas universidades que já adotam o sistema de cotas [seja ele qual for]. Não tem nenhuma injustiça nisso”. A opinião de Paim não é a mesma do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), o único que votou contra a aprovação do PLC na seção deste mês. Segundo ele, o projeto “impõe uma camisa de forças para todas as universidades brasileiras". Além de afetar a excelência do ensino e tirar a autonomia das reitorias acerca do modelo de ingresso.
A voz das pesquisas
Apesar da opinião radicalmente contrária apresentada pelo senador Nunes Ferreira, a sociedade parece ser a favor do sistema de cotas, em sua maioria: em pesquisa realizada pelo Datafolha, em 2008, 51% dos entrevistados se disseram favoráveis às cotas raciais; quando a pergunta disse respeito às cotas sociais, 86% das pessoas apoiaram a medida. O apoio popular ganha mais força quando se analisa o desempenho de cotistas em universidades que já adotam alguns sistemas: alunos que entram na universidade por meio de cotas têm notas iguais ou até maiores do que os que utilizam o sistema universal. E os índices de evasão são praticamente os mesmos que os dos alunos não cotistas, se a universidade apresenta algum programa de apoio financeiro aos mais pobres.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), referentes ao biênio 2005-2006, cotistas obtiveram maior média de rendimento em 31 dos 55 cursos da Unicamp e coeficiente de rendimento (CR) igual ou superior aos de não-cotistas em 11 dos 16 cursos da UFBA. Os números se repetem em outros casos, conforme alerta a pesquisa elaborada pelo professor Jacques Velloso, da Faculdade de Educação da UnB [disponível aqui].
“O povo brasileiro não é contrário às políticas de ações afirmativas, nem na sua versão mais polêmica, o programa de cotas. Quem as rejeita são as classes médias e as elites, inclusive intelectuais e alguns veículos de comunicação”, afirma o historiador Petrônio Domingues, professor visitante da Rutgers University (EUA). “São necessárias ações concretas para se enfrentar o problema da exclusão do negro no Brasil, mais do que ‘boas intenções’, retórica política e debates acadêmicos”, acrescenta.
A antropóloga Yvonne Maggie, professora titular da UFRJ, é contrária à nova lei, porque acha que o governo, dessa forma, quer resolver o problema “a custo zero”. Em artigo publicado em seu blog 'A vida como ela parece ser', Maggie explica que apenas a entrada obrigatória de alunos pobres no ensino público superior não garante seu sucesso, já que o sistema vai continuar não oferecendo o apoio necessário. “Temo por esses jovens mais despreparados. Terão um longo caminho pela frente e não será fácil percorrê-lo. Já são sobreviventes do ensino médio. Já passaram pelas agruras para obter o diploma do ensino básico, cumprindo uma grade de 12 disciplinas em média por ano. Na universidade enfrentarão obstáculos mais pesados. Não há no ensino superior nenhuma preocupação em formar os menos preparados e ajudá-los a adquirir a base necessária para cumprir o currículo enciclopédico que é a regra. Ninguém presta muito atenção, mas sabemos que os mais fracos vão ficando pelo caminho”.
Imagem de divulgação do 'Novo ENEM'Diferentes sistemas |
Em 2001, o governo do Rio de Janeiro aprovou a leiestadual que instaurava o primeiro sistema de cotas em ensino superior do Brasil: Uerj e Uenf adotaram a medida já no vestibular de 2004. Foi neste ano, aliás, que a UnB anunciou seu próprio sistema de ações afirmativas, seguida da UFBA. Há poucos meses, em votação marcante, o STF declarou o sistema de cotas raciais como constitucional, o que abriu portas para que o PLC saísse de vez da gaveta e fosse levado adiante.
Evandro Piza, professor da Faculdade de Direito da UnB e um dos responsáveis pela criação do sistema de cotas na UFPR, anuncia que é a favor da nova lei porque ela vai obrigar as universidades que não adotavam qualquer sistema de inclusão social ou racial a passar a fazê-lo, mas se diz crítico com relação a alguns pontos. “A lei em si tem vantagem – impõe políticas de ação afirmativa direto às universidade que foram inertes. Isso é necessário. Porque a universidade é pública. Agora, por outro lado, tem uma coisa que se esquece. O debate qualificado. Cada estado tem uma necessidade diferente, por isso, o debate precisa ser diferente”.
Piza diz que na Universidade de Brasília, quando o sistema foi implantado, percebeu-se que muitos alunos que ingressavam no ensino superior da região vinham de escolas públicas. Mas se via pouca mistura racial nos corredores. Por conta disso, 20% das vagas dessa universidade são destinadas a pretos, pardos e índios. Na UFPR, o modelo adotado destina 20% das vagas à escola pública e 10% a cotas raciais. “Sou contra as cotas destinadas à escola pública. E isso não é um argumento elitista. Ali se faz um filtro que não funciona sempre. Não pega as pessoas que tiveram chances diminuídas no ensino público, porque só cobra três anos cursados na rede. Na minha opinião, o número de anos tinha que aumentar. Para seis, por exemplo”. Além disso, ele critica o sistema de declaração de renda explicitado na lei, porque é passível de fraude.
Bem ou mal, a lei está nas mãos da presidente Dilma Rousseff, que já tem acordo firmado com o Senado para aprovar o texto mantendo o veto ao artigo que diz respeito ao ingresso de cotistas no ensino superior sem vestibular, por meio da análise do CR obtido ao longo do ensino médio. Ou seja, para ingressar nas universidades públicas brasileiras, que ainda representam o que há de melhor no ensino superior no país, só fazendo o vestibular e tirando boas notas. Independente da cor da pele ou classe social.
Disponível em: Revista de História
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