Queima de café em Santos, no Litoral de São Paulo,
patrocinada pelo governo Vargas, no início dos anos 30
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Por José Fucs
Fazia quase dois anos que ocorrera o crash na Bolsa de Valores de Nova York, em outubro de 1929. Mas os estragos provocados pela crise ainda eram sentidos em todo o planeta – e também no Brasil. Em junho de 1931, uma nuvem de fumaça gigantesca, que vinha de uma enorme fogueira, pairava sobre a cidade de Santos, no Litoral de São Paulo, por onde escoava boa parte das exportações do café brasileiro. Acesa durante as festas juninas, a fogueira duraria até o fim do ano – mas tinha pouco a ver com a comemoração de São João. Ela fora iniciada para queimar os estoques de café, então responsável por 70% das exportações brasileiras, que se acumularam com a retração do mercado externo. Enquanto o fogo durou, consumiu milhões de sacas. O aroma do café torrado era tão forte que ultrapassava as fronteiras municipais. Era contido apenas pelas encostas da Serra do Mar, que se estende pela costa paulista.
O café era queimado a mando do governo de Getúlio Vargas para tentar reduzir o impacto negativo da crise no Brasil, então responsável por 60% das vendas mundiais do produto. Vargas assumira o poder um ano antes, por meio de um movimento militar que se tornou conhecido como Revolução de 1930. A economia balançava. As exportações, que atingiram US$ 445 milhões em 1929, caíram para US$ 180 milhões em 1930. Segundo a Bolsa de Café de Santos, a cotação da saca no mercado internacional – 200 mil-réis em agosto de 1929 – caíra quase 90%, para 21 mil-réis, em janeiro de 1930. Nas fazendas cafeicultoras, concentradas no interior paulista e no Paraná, muitos resolveram seguir o mesmo caminho e queimaram o café colhido.
Todos os elos envolvidos na cadeia de produção do café brasileiro – fazendeiros, comerciantes, banqueiros e trabalhadores rurais (a maior parte imigrantes) – foram atingidos pela crise. Muitos produtores foram à bancarrota. O desemprego no campo se multiplicou, estimulando um movimento migratório para as cidades, em especial para São Paulo. Como se veria depois, o que acontecia naquele momento era apenas o início de um profundo processo de mudanças que se prolongaria até o fim dos anos 30, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Essas transformações marcariam para sempre a economia nacional e internacional. Dos escombros da economia do café, surgiria um novo modelo econômico, que se manteria praticamente o mesmo até quase os dias de hoje.
Em 2009, o crash de 29 completará 80 anos – coincidentemente, no momento em que parece haver uma crise global de proporções comparáveis, com desaceleração na atividade econômica e alta no desemprego. Embora os contextos das duas crises sejam bem diferentes (leia a reportagem à pág. 58), a história da crise de 29, em particular seus desdobramentos no Brasil, pode trazer lições preciosas sobre as medidas que ainda fazem sentido – e as que não fazem – para reduzir o impacto do encolhimento global no país.
Naquela época, o Brasil passou por um grave problema cambial. De acordo com o historiador Caio Prado Júnior (1907-1990), autor de História econômica do Brasil, publicado pela primeira vez em 1945, a queda nas exportações, provocada pela crise, gerou um desequilíbrio na balança comercial brasileira. Sem uma indústria sólida, o Brasil exportava apenas café e outros produtos agrícolas, como algodão, cacau e borracha. Como não eram produtos essenciais para o consumidor – portanto, suas compras poderiam ser interrompidas a qualquer hora –, dizia-se que o país tinha uma “economia de sobremesa”. A moeda forte obtida com essas exportações servia para pagar as importações de boa parte dos produtos industrializados consumidos pelos brasileiros. O aprofundamento da crise, porém, provocou a redução da demanda externa e a queda dos preços internacionais do café. Com isso, o déficit comercial do país cresceu rapidamente.
A crise também causou a interrupção do fluxo regular de capital estrangeiro para o Brasil. O dinheiro externo alimentava a economia brasileira desde os tempos do Império, e seu ingresso se intensificara entre a Proclamação da República, em 1889, e a posse de Vargas, em 1930 – período da história conhecido como República Velha. A falta do dinheiro externo agravou ainda mais o déficit cambial brasileiro. A moeda nacional se desvalorizava rapidamente. O valor da libra esterlina, então a moeda mais usada no mundo, passou de 40 mil-réis, em 1929, para quase 60 mil-réis, em 1934. Com as exportações em queda e sem financiamento externo, o governo aumentou de forma brutal a emissão de moeda – e isso provocou alta da inflação.
A crise de 29 provocou uma queda recorde nas exportações de café e um grave problema cambial
Para preservar as poucas reservas em moeda forte que o Brasil tinha em caixa, o governo Vargas impôs um rígido controle sobre o câmbio e passou a administrar com rigor as remessas de lucro por empresas estrangeiras. Faltava moeda forte para pagar as importações, essenciais ao atendimento da demanda interna e ao desenvolvimento do país. Houve uma acentuada queda na compra de produtos do exterior, também desestimulada pela desvalorização da moeda brasileira. As importações, que registraram uma média de 5,4 milhões de toneladas de 1926 a 1930, caíram para 3,8 milhões entre 1931 e 1935, segundo Prado Júnior.
Na tentativa desesperada de compensar os cafeicultores, o governo Vargas aumentou as compras dos excedentes de café durante praticamente toda a década de 30, segundo afirma o brasilianista Thomas Skidmore, no clássico Brasil: de Getúlio a Castelo, lançado em 1975. Para Skidmore, mesmo com os esforços do governo e a adoção de uma política de “socialização dos prejuízos” dos cafeicultores, era impossível deter o declínio das receitas cambiais brasileiras. (Só recentemente, pela primeira vez na História, o país conseguiu superar o problema crônico de falta de divisas, com a explosão das exportações brasileiras e o acúmulo de US$ 200 bilhões em reservas cambiais.) Nem a queima dos excedentes de café foi suficiente para amenizar o problema. Skidmore afirma que, apesar da queda nas importações, o déficit nas contas externas se aprofundou ainda mais e obrigou o Brasil a suspender os pagamentos da dívida externa em 1938 e 1939. Tal medida voltaria a ser adotada em 1987, meio século depois, nos tempos do Plano Cruzado, implementado no governo do presidente José Sarney.
Apesar do impacto que a crise de 29 teve na economia brasileira, muitos acadêmicos acreditam que não foi ela o fator fundamental para deflagrar o movimento armado que depôs o presidente Washington Luiz, em 1930. O historiador Boris Fausto, autor de Revolução de 30 – a historiografia e a história, afirma que a crise teve “pouco efeito” nos primeiros meses daquele ano no Brasil. Segundo ele, os principais fatores que conduziram à Revolução de 30 tinham relação com a política interna. Principalmente com a ruptura do acordo do “café com leite”, uma espécie de pacto informal entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais para se revezar na Presidência. Na visão de Fausto, a crise foi provocada s pela insistência de Washington Luiz em lançar um candidato paulista para sua sucessão nas eleições de março de 1930.
Fausto diz que a derrota de Vargas, o candidato oposicionista apoiado por Minas Gerais, gerou descontentamento em setores da sociedade. Logo em seguida, com o assassinato de João Pessoa, o oposicionista que governava a Paraíba, o clima desfavorável se acentuou. Acusava-se o governo federal de ter patrocinado o crime por motivação política. Hoje, sabe-se que o assassinato de Pessoa foi um crime passional, que nada tinha a ver com política. Mas o episódio serviu como combustível para os “revolucionários” conduzirem Vargas ao poder. “O grande impacto da crise no país viria depois da Revolução de 30”, afirma Fausto.
A economia cafeeira já perdia forças desde antes da crise. Com a ampliação da área de plantio e a superprodução constante, os preços do café estavam em queda há anos. O governo tentava manter a roda girando com a compra dos excedentes – uma estratatégia criticada asperamente pelos seguidores da política liberal do “laissez-faire” na economia. Para eles, a tentativa de manipular o preço do café teria efeito efêmero e seria contraproducente no longo prazo. O governo, no entanto, não dava ouvidos à oposição. “Era uma situação paradoxal: o Brasil exportava produtos primários e importava produtos manufaturados, como sugeriam os princípios do liberalismo econômico”, diz o brasilianista Skidmore. “Mas tentava, também, aumentar ao máximo sua vantagem relativa por meio de controles de mercado e da intervenção estatal num setor vital da economia.”
Como se tudo isso não fosse suficiente, crescia a concorrência internacional – em particular da Colômbia – ao café brasileiro. Os principais países consumidores, como Estados Unidos, França, Itália, Holanda e Alemanha, que compravam 80% da produção brasileira, passaram a diversificar seus fornecedores. Havia a percepção de que, no Brasil, misturavam-se ao café todos os tipos de impurezas, como pedras, terra e gravetos, para aumentar o peso das sacas. Também se acusavam os produtores nacionais de incluir café de baixa qualidade nas sacas para aumentar o lucro. Quando a crise internacional chegou ao Brasil, ela representou apenas o golpe final para que o sistema econômico da República Velha, centrado na monocultura do café, entrasse em colapso.
Sem acesso aos importados, os consumidores representavam um mercado cativo para as empresas
A estratégia do governo Vargas para enfrentar a crise baseou-se principalmente na substituição das importações, por meio do desenvolvimento da indústria local, e na intervenção do Estado na economia. De acordo com o economista Celso Furtado (1920-2004), ex-ministro do Planejamento no governo João Goulart (1962-1964), a economia cafeeira, embora em decadência, gerou os recursos necessários para impulsionar a industrialização e favoreceu o desenvolvimento de um mercado interno, formado pela mão de obra assalariada dos imigrantes e pelos produtores rurais e suas famílias.
Inicialmente, a demanda era atendida pelas importações. Depois, passou a ser suprida pela produção local. Sem acesso aos importados, os consumidores representavam um mercado cativo para as empresas nacionais. Assim, apesar da crise externa, a produção industrial brasileira pôde crescer rapidamente. Acentuou-se o processo de nacionalização da economia. A desvalorização da moeda, em decorrência da crise, encarecia as mercadorias estrangeiras e representava um estímulo para a incipiente industria local. Muitos cafeicultores que conseguiram sobreviver à crise começaram a investir no setor industrial. A política econômica de Vargas foi reforçada por dois fatores externos. O primeiro foi o “New Deal”, um pacote de medidas para reativar a economia americana lançado em 1933 pelo presidente Franklin Delano Roosevelt O segundo foram as teorias do economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946), delineadas em seu livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda-, publicado em 1936. Tanto Roosevelt quanto Keynes defendiam a atuação do Estado para estimular a atividade econômica. Keynes, de certa fornia, deu legitimidade conceituai à política implementada por Vargas. No Brasil, um dos principais entusiastas das idéias de Roosevelt e Keynes foi o engenheiro e empresário Roberto Simonsen (1889-1948), senador e presidente da Fiesp, entidade que reúne os industriais paulistas.
Simonsen defendia o fortalecimento do Estado para permitir a industrialização brasileira. Apesar de ter se oposto a Vargas no início do governo, acabou se aliando a ele. Amparado nas idéias de Keynes e Roosevelt, temperadas por seu nacionalismo peculiar, Vargas promoveu a criação em série de empresas estatais. Entre elas, fundou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), privatizada em 1993, e a Companhia Vale do Rio Doce, privatizada em 1997. Em seu segundo mandato, Vargas voltou a investir na criação de estatais. Em 1953, foi a vez de fundar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), depois rebatizado de BNDES, com “S”, para incorporar a palavra “social” no nome. No mesmo ano, foi criada a Petrobras, depois da campanha popularizada pelo slogan O petróleo é nosso. A política econômica de Vargas criou raízes profundas no Brasil. Manteve-se viva mesmo durante o governo militar, que assumiu o poder após o golpe de 1964. Ao contrário dos militares chilenos, que derrubaram o governo socialista do presidente Salvador Allende em 1973, o regime militar que se instaurou no Brasil não apostou no liberalismo econômico para estimular o desenvolvimento. Ao contrário, acabou por reforçar a tendência estatizante e nacionalista que vigorava no país antes de os militares assumirem o poder. Durante o regime militar, foram criadas diversas outras estatais, entre elas a Telebrás (1972), privatizada em 1998, e a Nuclebrás (1975), que continua sob o controle do Estado.
Hoje, como beneficio da perspectiva histórica, pode-se dizer que o protecionismo e o estatismo adotados por Vargas para combater os efeitos da crise de 29 favoreceram o desenvolvimento de um parque industrial pujante no Brasil. Mas também geraram tremendas distorções, como a ineficiência das empresas, o encarecimento dos produtos por falta de concorrência internacional e o desestímulo à inovação. A estatização e o protecionismo tendem a estimular também o descontrole das contas públicas, a corrupção, o empreguismo e o tráfico de influência.
A criação de um clima hostil ao capital estrangeiro também não ajuda o país a se desenvolver. Atualmente, até a China, que se isolou do resto do mundo durante 30 anos, sob o comando de Mao Tsé-tung, tem uma economia aberta. Desde 1978, quando as reformas econômicas abriram o país, a China cresce a taxas de 10% ao ano. O Chile também se tornou um exemplo admirado globalmente e deve se tornar o primeiro país latino-americano a ingressar no Primeiro Mundo, graças, sobretudo, à persistência de políticas econômicas liberais ao longo de 35 anos. A economia brasileira tem um tamanho intermediário entre a chilena e a chinesa e, com certeza, tem lições a extrair de ambas. O modelo econômico adotado por Vargas para combater os efeitos da crise de 1929 pode até ter trazido bons resultados em sua época. Mas, hoje, no mundo globalizado em que vivemos, suas idéias – baseadas no intervencionismo e no nacionalismo paternalista – parecem pertencer ao tempo das diligências.
Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca - 31/12/2008.
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