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domingo, 25 de agosto de 2013

Exemplos a não seguir: libertação tardia dos escravos no Brasil e em Cuba

Brasil e Cuba adiaram a libertação de seus escravos com leis que evitavam colocar em risco as hierarquias raciais


Iacy Maia Mata*


O século XIX estava perto do fim, mas Cuba e Brasil mantinham-se como as únicas regiões das Américas onde persistia a escravidão. A posição nada honrosa foi resultado de uma política de postergação do problema, com leis de emancipação gradual, até que a situação ficasse insustentável. Enfim, ficou.

No Império do Brasil, a Lei do Ventre Livre, de 1871, libertava todas as crianças nascidas de mães escravas. A mesma lei instituiu medidas como a “alforria forçada”, obrigando o senhor a libertar o escravo que possuísse a quantia correspondente ao seu valor. Na Cuba ainda sob o domínio espanhol, a Lei Moret, de 1870, se assemelhava às iniciativas brasileiras: liberdade para todas as crianças nascidas de escravos a partir de 1868 e para todos os escravos com mais de 60 anos. A lei permitia ao escravo vítima de “crueldade excessiva”, submetido a uma grande quantidade de açoites, por exemplo, reivindicar a liberdade.

Mas a legislação cubana foi aprovada por força de uma guerra anticolonial que agitou os escravos – muitos fugiram das fazendas, outros se incorporaram ao Exército Libertador, que lutava pela independência da ilha. Conhecida como Guerra dos Dez Anos (1868-1878), a campanha eclodiu em função de uma motivação nacionalista contra a Espanha, liderada por setores médios criollos (nascidos em Cuba), pequenos proprietários de escravos e negros livres urbanos. Durante a contenda, foi incorporada também a luta contra a escravidão. A independência mesmo só iria ocorrer em 1898, após outra guerra que durou três anos, e que teve a participação dos Estados Unidos, dando início à intervenção direta dos norte-americanos na ilha.

Mesmo antes das leis emancipacionistas, escravos em Cuba e no Brasil já recorriam à Justiça para obter alforria. Os brasileiros usavam como argumentos a punição excessiva e situações como a de já ter sido libertado ou de ter entrado no país após a abolição do tráfico. Os cubanos iam aos tribunais por conflitos com seus amos sobre o preço da alforria. Com a aprovação da Lei Moret e da Lei do Ventre Livre, o Judiciário tornou-se um espaço ainda mais importante de disputa pela liberdade.

A abolição do cativeiro em quase toda a América pressionava os últimos redutos escravocratas. Em 1879, uma comissão de parlamentares reuniu-se em Madri para discutir, entre outros temas, a escravidão em Cuba. As imagens da Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos, terminada 14 anos antes, ainda impressionavam as elites cubanas e as autoridades espanholas. Temia-se, para a ilha caribenha, um desfecho semelhante ao do vizinho Haiti – onde uma revolução dos negros em 1791 pôs fim à escravidão e, de quebra, ao domínio colonial francês. Alguns escravos e negros livres de Cuba tomavam a experiência haitiana como inspiração. No início do século XIX, circulavam por Havana gravuras com a imagem de Toussaint Louverture (1743-1803), escravo que se tornou o maior líder da revolução haitiana. Nas décadas seguintes, cativos envolvidos em conspirações antiescravistas, quando interrogados, demonstravam saber que os escravos haviam tomado o poder no Haiti – e alguns contavam com uma suposta ajuda dos haitianos para promover sua emancipação. 

Parlamentares e homens de governo que compunham a comissão de 1879 queriam evitar guerras sangrentas como as do Haiti e a dos Estados Unidos. Nos acirrados debates em Madri, a situação do Brasil foi bastante citada. A legislação emancipacionista brasileira era vista como exemplo de sucesso, pois, segundo os parlamentares, teria evitado o confronto armado, o declínio da produção e os conflitos raciais. Parecia ser uma lição para Cuba: a solução gradual extinguiria paulatinamente a escravidão sem colocar em risco as hierarquias raciais. Mas a marcha da liberdade no Brasil estava lenta demais. Em discurso dissonante na comissão, um dos parlamentares criticou: “E a opinião pública do Brasil, o que tem feito? Resolver a questão no sentido da abolição gradual. E como? (...) Pois bem: a lei gradual do Brasil é muito inferior à da abolição gradual de 1870 [Lei Moret]; cem anos pode viver o escravo naquele império sem que lhe alcance o benefício da redenção”.

Cuba não podia se dar ao luxo de esperar mais. Havia notícias de “desordens e perturbações” nas plantações. Escravos da parte oriental da ilha começavam a desertar em massa das fazendas. Muitos dos que permaneciam promoviam uma “resistência” passiva ao trabalho. Em 1878, após dez anos de guerra, havia sido assinado um tratado de paz (Pacto de Zanjón). Os revoltosos capitularam e saíram da guerra sem a independência e sem a abolição. Mas alguns líderes do Exército Libertador, descontentes, iniciaram uma nova insurreição cerca de um mês antes da primeira reunião da comissão. É o caso de Antonio Maceo (1845-1896). Negro livre da província de Santiago de Cuba, Maceo havia se ligado à Guerra de Dez Anos em 1868 como soldado, destacara-se nas batalhas e chegara a ocupar o posto de general do Exército Libertador. Leitor de biografias de Toussaint Loverture, ele defendia a abolição completa e incondicional. Exortava os escravos a que deixassem as plantações e lutassem com as armas pela liberdade. O governo colonial, para enfraquecer o movimento, caracterizou a mobilização negra pela independência e pela abolição como “guerra racial”.

Diante de tais pressões, a comissão reunida em Madri elaborou e enviou aos parlamentares cinco projetos de abolição. Um deles previa um período de “patronato”, em que os ex-escravos permaneceriam sob a tutela dos ex-senhores. Com algumas modificações, este projeto se transformou na Lei do Patronato, que foi aprovada pelas cortes espanholas em 13 de fevereiro de 1880. Embora falasse de “abolição imediata” em Cuba, o texto instituiu o patronato dos antigos senhores, concedendo aos ex-escravos o direito de receberem um pagamento, módico e simbólico, de três pesos mensais. A partir de 1884, os patronos estariam obrigados a liberar um quarto dos patrocinados em seu poder, começando pelos mais velhos. Quando a Lei do Patronato foi aprovada, havia em Cuba cerca de 194 mil escravos. No término do prazo estabelecido, em 7 de outubro de 1886, restavam apenas 25.381 patrocinados a serem libertos.

No final de 1886, o Brasil era o último país das Américas a manter a escravidão. Calcula-se que naquele momento ainda existiam mais de meio milhão de escravos. Minas Gerais (191.952), Rio de Janeiro (162.421), São Paulo (107.329) e Bahia (76.838) eram as províncias com o maior número de cativos no país. Nenhum projeto de abolição havia sido apresentado no Parlamento, e vigorava ainda a Lei dos Sexagenários, que em 1885 libertou todos os escravos com mais de 60 anos e que previa cerca de 13 anos para a extinção total da escravidão. Para muitos contemporâneos, isso significava que a escravidão já estava abolida no Brasil. Mas a opinião pública exigia a resolução imediata do problema servil. O movimento abolicionista estava a todo vapor. Comícios, saraus, peças teatrais e eventos para arrecadar fundos para a compra de alforrias movimentavam as cidades. Redes envolvendo intelectuais, advogados, negros livres e escravos aliavam a luta pela liberdade nos tribunais e na imprensa com ações como fuga e acoitamento (ocultação) de escravos. Escravos fugiam em massa das fazendas (sobretudo em São Paulo, mas também em outras regiões do Brasil) e recusavam-se a continuar trabalhando nas plantações.

Nesse clima de “desordem” foi assinada a Lei da Abolição. Diferentemente das leis do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1885), a lei de 13 de maio foi aprovada às pressas, não tendo sido objeto de muitas discussões. A temperatura do debate público exigia urgência na solução da questão. O projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados no dia 8 de maio, aprovado em segunda discussão no dia 9 e convertido em lei no dia 13. Escravistas de plantão exigiram indenização para os ex-senhores e leis que obrigassem os libertos a trabalhar. Mas não havia clima político para a tomada de medidas que sugerissem um novo tipo de escravidão. Foi aprovada a liberdade imediata e incondicional. Neste dia, encerrava-se a longa história de escravidão negra nas Américas.

* Iacy Maia Mata é professora da Universidade do Estado da Bahia, autora da tese “Conspirações da ‘Raça de Cor’: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881)” (Unicamp, 2012).

Disponível em Revista de História

Saiba mais- Bibliografia
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FERRER, Ada; GARCIA RODRIGUEZ, Gloria; Opatrný, Josef. El rumor de Haití en Cuba: temor, raza y rebeldía, 1789-1844. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004.

MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. 


SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Unicamp, 1991.

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