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domingo, 8 de julho de 2012

Democracia 'made in' Paraguai

Impeachment relâmpago do presidente Fernando Lugo tira o Paraguai do esquecimento internacional. A crise política é resultado de uma longa história de furos na democracia e de enriquecimento da elite às custas da população

Por Nashla Dahas

Fernando Lugo em discurso após o impeachment
Fernando Lugo em discurso após o impeachment
Ele não é litorâneo, nem andino; e está acostumado ao ostracismo internacional desde os tempos da colonização, quando os esforços europeus se dirigiram aos metais preciosos, às produções agrícolas e às cidades de porto. Hoje, o Paraguai está no centro das discussões políticas latino-americanas. Não pelo sucesso, mas pela crise: o impeachment relâmpago do presidente Fernando Lugo, na última sexta-feira (22), e a ascensão ao poder do vice, Frederico Franco (que já foi presidente em outra ocasião), gerou muita desconfiança dos países membros do Mercosul, que o isolaram economicamente. O país agora está num cerco que remete àquele feito há mais de cem anos, na Guerra do Paraguai [veja o artigo de Leslie Bethel, Todos contra o Paraguai]. Para se entender a cena social, política e econômica de hoje, precisa-se voltar um pouco no tempo.


A Guerra do Paraguai – ou contra o Paraguai – aconteceu na segunda metade do século XIX e constituiu-se na maior guerra da história da América do Sul, com violência e extensão assustadoras para os padrões da época. Após cinco anos de lutas o Paraguai passou à periferia da América a quem temos dedicado incansável esquecimento. Em 1894, por exemplo, Machado de Assis ironicamente perguntava em uma de suas crônicas: “A comissão uruguaia está trazendo medalhas comemorativas da campanha do Paraguai, não sendo propriamente antiga, fala de coisas velhas aos moços. Campanha do Paraguai! Mas então, houve alguma campanha do Paraguai? Onde fica o Paraguai?”. Com a economia devastada – sem recursos ou empréstimos para reequipamento – e com subnutrição e epidemias de todo tipo, o Paraguai tornara-se um país de sobreviventes, sobretudo indígenas, “bárbaros” confusos e dispersos em seu próprio território. 

O Paraguai de Stroessner

As relações com o Brasil só tornariam ao centro das discussões no contexto dos esforços paraguaios de integração regional e mundial iniciados nos anos de 1960, que tiveram como marco a construção da hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná. À época, estava no poder o general Alfredo Stroessner, que governou durante 35 anos (1954 a 1989) após um golpe de Estado. Stroessner poderia muito bem ter seu governo comparado ao dos ditadores africanos que enriqueceram, assim como seus partidários, à custa do empobrecimento e sacrifício da maior parte da população. Ambicioso, o projeto de construção da usina hidrelétrica de Itaipu gerou algumas fortunas aos companheiros do general e tornou mais dócil o até então imprevisível exército.

Ex-presidente Stroessner estampado em selo
Por outro lado, o Partido Colorado teve suas alas moderadas expulsas, enquanto a extrema direita avançava e tornava quase obrigatória a filiação de todos os servidores públicos. Assim, uma estranha democracia, bestializadora diriam alguns, deu a vitória ao general Stroessner nos oito pleitos eleitorais seguintes e distribuiu recursos, rendas fundiárias e energéticas às suas clientelas. Destaque-se ainda a fundação, em 1957, da cidade Puerto Presidente Stroessner, mais tarde denominada Cidade do Leste, na divisa com o Brasil e separada de Foz do Iguaçu pela ponte internacional chamada coerentemente de “Ponte da Amizade”. O livre comércio de produtos asiáticos converteu a região no paraíso da ilegalidade e do contrabando, fomentando uma imagem internacional do Paraguai ligada às mercadorias de baixa qualidade e preço, porém mais acessíveis aos desejosos da aparência inclusiva que a posse de certos artigos, especialmente eletrônicos, pode fornecer nos países hoje ditos em desenvolvimento.

O Paraguai hoje

Desigualdade social e fundiária, baixo grau de acesso à educação e saúde de qualidade, altos índices de corrupção política e econômica, e mão de obra vendida a preço vil. Foi este quadro tão perverso quanto comum nos países latino americanos, que Fernando Lugo se comprometeu a romper durante a campanha presidencial de 2008. Bispo católico com algumas denúncias de paternidade no currículo e experiência política reduzida à militância junto aos movimentos sociais na diocese de San Pedro, uma das regiões mais pobres do país, Lugo tornou-se chefe do executivo paraguaio prometendo viabilizar reforma agrária "projetada e negociada com todos os atores envolvidos, sem processos traumáticos nem violentos".

Mapa do Paraguai

Caso estivesse vivo para contar essa história, Salvador Allende, presidente chileno morto em 1973, dentro do Palácio La Moneda, talvez lhe dissesse que vias pacíficas e constitucionais para transformações profundas e redistributivas não são tão simples. Dividido entre o controle dos grupos de camponeses que invadiam propriedades na região agrícola mais rica do Paraguai, na fronteira com Brasil e Argentina, e os fazendeiros e políticos de oposição que denunciavam a violência das tomadas de terra e emperravam qualquer medida parlamentar de reforma agrária, o presidente Lugo isolou-se politicamente e tornou-se alvo fácil de uma democracia made in Paraguai. Foi acusado e teve teoricamente 18 dias para se defender – o veredito saiu de uma decisão política e não popular. Mas, em dois dias, correram a abertura do processo, a acusação, defesa, julgamento e condenação.

“Como sempre atuei no marco da lei, embora essa lei tenha sido torcida como um frágil ramo ao vento, me submeto à decisão do Congresso e estou disposto a responder sempre por meus atos como ex-mandatário nacional”. A declaração de Lugo ao deixar a presidência do Paraguai invoca a legalidade como estratégia de defesa e justificativa, recurso comum entre direitas e esquerdas latino-americanas. Em 1964, no Brasil, o presidente João Goulart e seu governo trabalhista foram golpeados por ação civil-militar que deu início a uma longa ditadura. Também estavam em pauta projetos de reforma agrária, redistribuição de renda e a salvaguarda da legalidade constitucional defendida como projeto e desprezada como processo.

Talvez seja o momento de mudarmos o discurso e repensarmos uma das questões fundamentais do pensamento político moderno: a raiz e a fortaleza da democracia, a soberania popular. Ao bom investigador não faltam indícios das fragilidades jurídicas da sociedade e de sua ineficiência no exercício pleno da soberania popular. Sinais de que nos meandros das crises podemos encontrar o caminho para a modernização não mais das instituições, da técnica e dos procedimentos, mas do significado da política e do espírito democrático.


Disponível em:


Edição nº 82 - Julho 2012

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